Cinquenta receitas para enfrentar a crise e a concorrência do digital no cinema francês

Apresentado esta quarta-feira em Paris, o "Relatório René Bonnell" propõe 50 medidas para enfrentar a situação de crise.

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A actriz Valerie Lemercier no filme 100% CachemireDR

Em França, como em Espanha e, com maior expressão (e proximidade), em Portugal: o cinema, reino por excelência das ilusões, já não pode contornar a realidade e abstrair-se da crise e dos novos desafios que o digital veio trazer ao sector – e é preciso reagir.

Em Portugal, espera-se que uma nova versão da Lei do Cinema venha desbloquear a resistência dos operadores de televisão por subscrição quanto ao pagamento da taxa anual a que estão obrigados; em Espanha, uma Comissão Mista do Cinema, que, no ano passado, juntou representantes do sector e governantes, abriu caminho a promessas de alterações no IVA e de incentivos fiscais; em França, esta quarta-feira está a ser marcada pela realização das II Jornadas do Cinema Francês, que retomam um debate lançado precisamente há um ano, na Comédie Française, por iniciativa da ministra da Cultura, Aurélie Fillipetti.

A sessão, que reúne representantes das várias profissões do sector audiovisual, começou com a apresentação do muito esperado relatório feito por René Bonnell, um ex-director do grupo Gaumont, do Canal + e da France Televisions, figura respeitada e que ficou encarregada de produzir um “caderno de encargos” para a modernização e adequação do sector aos novos desafios.

E o que René Bonnell prescreve, em 50 propostas compiladas num documento de 200 páginas, segundo a descrição da AFP, não foge muito ao que tem sido defendido noutros quadrantes: transparência nas contas e nos números, adaptação dos cachets à realidade da indústria, e a necessidade de captação de capitais privados num sector que, até aqui – é o famoso “modelo francês” –, tem vivido prioritariamente de um complicado sistema de taxas sobre as receitas de bilheteira, mas também sobre as televisões por subscrição e a vasta rede de edição e distribuição do cinema e audiovisual.

Antecipando a revelação do "Relatório Bonnell", a presidente do CNC (Centre National du Cinéma et de l’Image Animé), Frédérique Bredin, apontou a necessidade de “uma verdadeira reforma” e não apenas de “um simples ajustamento”. “O cinema e o audiovisual devem criar os meios para construir colectivamente novos modelos”, disse ainda Bredin.

Como cenário deste debate, a França tem também experimentado no cinema uma acentuada perda de espectadores, que, em 2013, se cifrou numa quebra de 5,3% relativamente ao ano anterior e que se traduziu, pela primeira vez, na descida da barreira dos 200 milhões de bilhetes pagos.

Um ponto a que o "Relatório Bonnell" dá especial relevo – e que decorre da discussão lançada, no jornal Le Monde, em Dezembro de 2012, pelo distribuidor Vincent Maraval – é a necessidade de “diminuir os cachets excessivos das vedetas”, sejam actores ou realizadores, e que se mantêm muito altos, apesar da sucessão de fracassos comerciais dos filmes.

Intitulado O Financiamento da Produção e da Distribuição Cinematográficas na Hora do Digital, o "Relatório Bonnell" põe exactamente a tónica na necessidade de adequar os meios de financiamento e de produção ao novo paradigma audiovisual global, em que a indústria americana – e nomeadamente novas plataformas de distribuição, como serviços de aluguer de filmes e canais por cabo, mas também novos “actores” como a Amazon e o Netflix – continua a dominar.

Mas Frédérique Bredin acredita que é ainda possível fazer com que a reforma agora proposta permita “regressar aos valores que deram origem ao modelo francês de apoios ao cinema”, e nomeadamente salvaguarde a excepção cultural, de que a França foi a principal guardiã aquando das negociações, na década de 1990, dos acordos do GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio) com a América.

Resta agora saber que reflexo e sequência vai ter, em França, o "Relatório Bonnell", sendo certo que – como avança o jornal Libération – há um conjunto de temas polémicos e “dossiers inflamáveis” no sector audiovisual no país. E a inevitável diferença de perspectivas e receitas para a crise começou logo a manifestar-se no seio da própria comissão presidida por Bonnell, com um grupo, liderado pelo realizadora Pascale Ferran, a apresentar um “anexo” ao relatório principal com uma leitura diferente da situação. 

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