Descobrir Charles Chaplin, cineasta músico, num teatro de ópera

Um ciclo de cinema no Teatro Nacional de S. Carlos, em Lisboa, assinala o nascimento de Charlot há 100 anos. As sessões serão acompanhadas pela Orquestra Sinfónica Portuguesa dirigida por Timothy Brock.

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O maestro Timothy Brock no ensaio geral com a Orquestra Sinfónica Portuguesa durante a projecção do filme O Circo Daniel Rocha
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O maestro Timothy Brock no ensaio geral com a Orquestra Sinfónica Portuguesa durante a projecção do filme O Circo Daniel Rocha

Charlot, o “boneco” de Charles Chaplin, nasceu há cem anos, num filmezinho de uma bobine chamado Kid Auto Races at Venice e estreado em Fevereiro de 1914.

Chaplin tinha então 25 anos e acabara de chegar à América para trabalhar na então (e em comparação com aquilo em que rapidamente se tornaria) ainda incipiente indústria do cinema americano. Kid Auto Races at Venice, um conjunto de momices durante uma corrida de automóveis (em Venice, Califórnia, não em Veneza, Itália), ainda não foi realizado por Chaplin, mas por Henry Lehrman, que viria a ser um dos seus mais constantes cúmplices durante a primeira fase da sua carreira.

E também não foi o primeiro filme em que Chaplin entrou; mas marca, mais até do que só simbolicamente, o nascimento de uma figura capital na história do cinema e da sua popularização, e bem assim o princípio da explosão de um dos maiores e mais geniais artistas de todo o século XX, uma daquelas apesar de tudo poucas figuras de quem se pode legitimamente dizer que se não tivessem existido nada – e por certo, no cinema – seria igual ao que conhecemos.

Este pequeno ciclo no Teatro de São Carlos assinala a efeméride. Serão exibidos, em cinco sessões entre esta sexta-feira e dia 30, cinco filmes de Chaplin: para além de Kid Auto Races, Burlesque on Carmen, O Circo, Luzes da Cidade e Tempos Modernos. E ainda como “bónus”, a cotejar com a versão burlesca de Chaplin, a Carmen que Cecil B. DeMille dirigiu no mesmo ano (1915) em que o cineasta homenageado realizou a sua variação.

A particularidade do ciclo vem da música: todas as sessões serão acompanhadas pela Orquestra Sinfónica Portuguesa, dirigida na ocasião pelo maestro inglês Timothy Brock, que há anos vem trabalhando em torno da música do cinema mudo, restaurando partituras de época ou compondo partituras originais, e muito particularmente sobre a música composta pelo próprio Chaplin para os seus filmes. Timothy Brock, com quem conversámos brevemente, conta como chegou a este grande envolvimento com o cinema e a música de Charles Chaplin.

No final dos anos 90, quando tinha já alguma reputação neste tipo de trabalho (estreara-se em 1985 a compôr uma nova partitura para A Boceta de Pandora, de Pabst, trabalhando pouco depois no seu primeiro restauro musical: a partitura composta por Shostakovitch para o Nova Babilónia de Trauberg e Kozintsev), recebeu dos herdeiros de Chaplin “uma proposta a a que era impossível dizer não”.

Pediam-lhe que pegasse no espólio musical deixado por Chaplin e trabalhasse na reconstituição da partitura de Tempos Modernos, de 1936. “Estava tudo em caixas que não eram abertas desde 1953”, conta Brock, e repousavam na propriedade suíça dos Chaplin, aonde Charles se exilou nesses princípios dos anos 50, zangado com a América e com a perseguição que o “mccarthysmo” lhe movia pelo seu notório “esquerdismo”.

Apesar de haver um número razoável de cineastas músicos, autores também das bandas musicais dos seus filmes (John Carpenter é um exemplo bem conhecido), tal não deixa de ser uma raridade. Brock explica o caso de Chaplin como o resultado de uma questão de “natureza cultural”. Filho de pais músicos, nado e criado nos palcos do vaudeville britânico, cedo a música se tornou para Chaplin “um elemento natural” do seu trabalho e da sua arte, uma “naturalidade” que não se quebrou quando começou a trabalhar no cinema, que de resto, “e sobretudo nos primeiros anos, foi para Chaplin uma evolução ou extensão a partir das raízes do vaudeville”.

Perguntamos a Brock qual é, na sua opinião, a principal característica do Chaplin-compositor: “um fortíssimo sentido da economia de meios”. E dá um exemplo preciso, relacionado com Tempos Modernos. Chaplin tinha encomendado, antes de compor ele próprio a música do filme, uma partitura ao músico alemão Hanns Eisler, um dos vários alemães que nos anos 30 fugiram do nazismo para Hollywood. Quando encontrou a partitura de Eisler, Brock “percebeu imediatamente” porque é que Chaplin a recusou: “é sobre-trabalhada, ‘sobre-escrita’, totalmente distinta da partitura que o realizador compôs, muito mais económica”. Essa identidade, reforça Brock, é a razão porque Chaplin seria sempre “o melhor compositor possível para filmes de Chaplin”: música e imagens nascem de um tronco comum, da mesma cabeça, da mesma sensibilidade, num todo radicalmente orgânico.

Estes filmes, que há cem anos eram vistos em salas populares, ainda antes do “reconhecimento” do cinema pelas classes altas e pelos meios intelectuais, têm agora lugar num teatro de ópera. “Ironia” que, segundo Brock, exprime não apenas o que mudou na relação com o passado do cinema mas também uma “elevação”, um reconhecimento da validade artística destas obras. E Brock, que estudou estes filmes a fundo, que os viu incontáveis vezes, garante: “em cada projecção, e mesmo ocupado com a direcção da orquestra, ainda encontro sempre alguma coisa de novo”. Que aos outros, espectadores, isto fique como promessa da descoberta de muita coisa nova, em filmes feitos há cem anos.

 

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