"Caso Miró": pior do que o pintam

Assuntos como o espólio de Miró devem ser encarados e resolvidos com sentido estratégico e visão de futuro.

Ainda está para durar a polémica gerada pela saída de Portugal das 85 obras do catalão Joan Miró, um dos maiores pintores do século XX, em condições que em nada abonam a imagem do Governo português, o qual não hesitou em afirmar que a permanência desse espólio no nosso país não era uma prioridade.

Tudo o que se possa dizer sobre as várias etapas deste complexo e nebuloso processo, que começou na calamitosa derrocada do BPN e ninguém sabe ainda como e onde irá terminar, nada acrescentará de novo ao assunto, mas impõe que se extraiam algumas ilações.

A primeira ilação é que o actual Governo, que despromoveu a Cultura do estatuto de ministério para o de secretaria de Estado (não é coisa que se esqueça!), não está vocacionado nem interessado em lidar correctamente com as coisas da Cultura. Já se sabia, mas não é de mais recordar. Mais grave se torna ainda essa constatação se tivermos presente que o responsável máximo por esta pasta no Governo é o próprio primeiro-ministro, que tomou, sobre o assunto, uma posição enfadada e pouco convincente, usando erradamente o argumento de que, se é preciso dinheiro para financiar a Cultura, então não devemos estar a gastar uma verba avultada com “estes quadros”, como se fosse essa a questão (e não é em absoluto) e não aquela que tem vindo a manter-se no centro de um aceso debate público, que é cultural mas também, e sobretudo, político.

Outra ilação pode e deve ser a seguinte: quem tiver dúvidas sobre o valor económico da Cultura, será conveniente que interprete a discussão em torno das obras de Joan Miró como a demonstração inequívoca de que a criação cultural e artística é mesmo relevante, envolvendo verbas avultadas e podendo gerar receitas apreciáveis, sobretudo quando espólios como este estão em condições de ser integrados no circuito museológico, no quadro de uma sustentável dinâmica de turismo cultural.

Recorde-se que as cidades de Barcelona e de Palma de Maiorca têm nas obras de Joan Miró, nascido na primeira cidade e falecido na segunda, onde trabalhou grande parte da sua vida depois de regressar de Paris, um dos principais motivos de atracção para turistas de todo o mundo. A Fundação Miró, em Barcelona, é um dos espaços culturais mais visitados da capital da Catalunha, o mesmo acontecendo com a casa-atelier do pintor em Palma de Maiorca. Se porventura as 85 obras do genial e inconfundível pintor permanecessem em Portugal, em exposição permanente ou em regime itinerante, iriam, por certo, atrair muitos milhares de visitantes, com toda a receita daí proveniente, designadamente ao nível dos ingressos, mas também nos sectores da hotelaria e da restauração. Mas terá esse aspecto sido sequer levado em consideração pelos decisores políticos?

Aqui, vale a pena recordar o que aconteceu em Glasgow, na década de 50 do século passado, com o célebre Cristo de São João da Cruz, do também catalão Salvador Dalí. Por iniciativa persistente e corajosa de um vereador daquele município, médico de profissão e amante de arte, a tela foi adquirida por 8200 libras, valor considerado demasiado elevado. Essa compra esteve no centro de uma intensa polémica, defendendo muitos que existiam outras prioridades e que esta opção era inaceitável. Porém, poucos anos bastaram para que o quadro se tornasse um forte motivo de atracção turística para a cidade e um factor de desenvolvimento económico em tempo de crise. E nem vale a pena falar do que o Museu Guggenheim representou e representa para Bilbau, que ajudou a sair de uma grave crise estrutural. Numa votação pública realizada em 2006, o Cristo de Dalí foi considerado a obra de arte favorita da Escócia, com todas as vantagens também financeiras e turísticas daí decorrentes.

É com este espírito e com esta visão que assuntos como o espólio de Miró devem ser encarados e resolvidos, com sentido estratégico, visão de futuro e sem a mesquinhez economicista que, por sinal, até contradiz o discurso duvidoso do “milagre da recuperação económica e financeira” que a realidade quotidiana do país tão amargamente desmente.

A permanência das obras de Miró em Portugal deveria ser encarada como um dever de Estado e não como uma hipotética fonte de receita capaz de atenuar os efeitos do escândalo BPN. Em relação a este tema, só me resta formular o voto de que nem o Cristo de Dalí acuda aos culpados dessa vergonha nacional que todos os dias nos esvazia os bolsos e nos faz estremecer de indignação e revolta.

Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

 
 
 
 

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