Bang bang, a morte do cinema como o conhecíamos

Que a próxima geração dê por terminada a relação com o digital e perceba que de outra forma o cinema tal como o conhecíamos morre – disse Quentin Tarantino em Cannes, onde há 20 anos recebeu a Palma por Pulp Fiction.

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Quentin Tarantino esta sexta-feira em Cannes, em conferência de imprensa Eric Gaillard/REUTERS

Os 50 anos da estreia de Por um Punhado de Dólares, de Sergio Leone, exibido na cerimónia oficial de atribuição do Palmarés de Cannes, no domingo, e os 20 anos da Palma de Ouro atribuída a Pulp Fiction (e quem presidiu ao júri desse ano? Foi o Pistoleiro Sem Nome do filme de Leone, Clint Eastwood), trouxeram Quentin Tarantino a Cannes. Bang Bang, disse ele, o cinema tal como o conhecemos está morto. Que a geração seguinte perceba o que está a deixar morrer. Bang bang!

Sergio Leone, primeiro: mais do que lhe ser creditada a criação do western spaghetti, disse Tarantino numa conferência de imprensa esta sexta-feira em Cannes, é mais importante responsabilizarem-no, a Leone e a outro Sergio, Corbucci, por terem tirado as bandas sonoras lá do fundo dos filmes. Por terem montado de acordo com a música. Isto é: Por um Punhado de Dólares, 1964, marca segundo ele “o nascimento de um género, o cinema de acção.” De cada vez que está a rodar novo filme, projecta um Leone em sua casa, para os membros da equipa, que levam família e crianças. O filme é, invariavelmente, O Bom, o Mau e o Vilão (1966), que tem no final a cena favorita de Tarantino.

“É um filme de três horas, mas as crianças ficam completamente arrebatadas. Eu acho que é por causa da montagem, coisa que elas, é claro, não percebem. Pode-se argumentar contra Leone que acabou por influenciar o estilo MTV. Mas a verdade é que [essa relação entre a imagem e a música] se tornou o vocabulário de Leone. Que é um cineasta moderno”. Tarantino não saberá dizer o que existe realmente de italiano nele, já que nem sequer cresceu rodeado de Sopranos, mas admite que o gosto pelos modos operáticos é ele a falar com o italiano que existe algures ali dentro.

Tem uma colecção impressionante de filmes em 35 mm. “Não contei as cópias dos filmes que tenho, não quero olhar para as minhas obsessões ao microscópio”, ri-se. A colecção em 16 mm é ainda maior. A vida que agora pode levar é qualquer coisa que o aproxima da doçura de “uma vida académica”: em casa a explorar vorazmente filmes, tirando notas, para um futuro livro, para um filme futuro ou apenas para seu enriquecimento - no dia “em que morrer” estará “formado em cinema”.

Podem ser os seus próprios filmes, já que não acredita naqueles realizadores que se recusam a revisitar a sua obra para não se confrontarem com as falhas. “Tenho pena deles, se me sentisse assim acabaria um dia por ter de deixar de filmar.” Há dias viu “until the very fucking endKill Bill 2. Sentiu-se compensado. Não é para admirar, faz os filmes para si próprio, os espectadores é que são convidados. Permanecem, os filmes, numa dimensão sem tempo nem espaço, a vogar na voracidade do seu autor. Não faz sentido perguntar-lhe o que ele hoje acharia do cineasta de Pulp Fiction e desse filme de há 20 anos. “I’m sure I’d love it” se o visse agora pela primeira vez.

Pulp Fiction passa em Cannes no final desta edição. Foi o único filme de todo o festival a ser exibido em 35 mm. Quentin fez questão. Diz ele que não projectar um filme em 35 mm em sala é assumir que a guerra está perdida. A guerra contra o digital, que é “a televisão numa sala grande”, que é um facsimile, qualquer coisa aparentada ao original mas em todo o caso nunca um original. O que é que pode levar alguém, pergunta ele, a uma sala de cinema para ver uma nova cópia de O Acossado, de Godard, projectada em digital, quando há em casa home cinema de alta qualidade e edições em DVD sofisticadíssimas?

O que vai acontecer a seguir? Diz esperar que esta “relação romântica tonta” com o digital passe, e que depois “desta geração, que é completamente desesperante, venha outra que seja diferente, mais inteligente a perceber o que perdeu.”

Não consegue perceber o que existe de italiano nele, mas consegue seguir os passos que o levam à cena original, por assim dizer, das personagens violentas e violentamente bigger than life dos seus filmes. Muitas delas sendo cameos dele. Tem a teoria de que os dez anos, de vida, de filmes, que antecedem a primeira experiência cinematográfica de um realizador deixam impressa uma marca. No caso dele, esses dez anos foram os anos 1980, a “era mais repressiva do cinema americano depois da década de 1950”. Havia uma série de dogmas, conta. “As personagens tinham de ser simpáticas, ou achava-se que o filme seria um falhanço. Se a personagem fosse um patife, no final havia uma reviravolta para ela se redimir. Eu odiava isso. A literatura policial, pelo contrário, era muito excitante, veja-se Elmore Leonard, estava cheia de personagens com falhas e motivações duvidosas. Acho que o meu cinema começou por ser uma reação à opressão dos anos 1980.”

Continua a escrever The Hateful Eight, projecto de western que o levou, no início do ano, a juntar actores amigos em casa, como Tim Roth, Samuel L. Jackson, Kurt Russell, Michael Madsen ou Bruce Dern para uma leitura do argumento. Vai na segunda versão, calmamente chegará à terceira, o que significa que voltou atrás na decisão de abortar o trabalho, por ter havido uma fuga que tornou pública a primeira versão do argumento. Acalmou a fúria, mas não sabe o que vai fazer quando The Hateful Eight estiver escrito. Pode tudo acabar por ser apenas publicado em livro.

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