Atingimos um novo patamar na representação dos homossexuais no cinema e na televisão

Looking, a série da HBO, trouxe para o mainstream a representação da comunidade gay. Como? Perguntámos ao responsável pela comunicação de um canal de televisão destinado ao público LGBT.

Fotogaleria
Nicolas Maille, responsável de comunicação da Pink Tv DR
Fotogaleria
As personagens principais de Looking, a nova série da HBO DR

Looking, a série norte-americana produzida pela HBO e assinada pelo realizador britânico Andrew Haigh, também autor de Weekend, um filme de sucesso em 2013, trouxe para a discussão pública o modo de representação da comunidade gay. Menos feérica, mais banal, alguns dirão até aborrecida. Nicolas Maille, responsável de comunicação da Pink TV, um canal de televisão francês inteiramente dedicado ao público gay, e responsável ainda pela angariação de mecenas e parceiros para projectos de temática homossexual, fala ao PÚBLICO sobre os desafios destes objectos que propõem uma outra forma de abordar, comercial e publicamente, o universo homossexual.

Que contributo para uma outra visibilidade da comunidade gay é dado através de uma série como Looking e de um filme como Weekend?
Acredito que filmes como Weekend ou séries como Looking atingiram um outro patamar no que respeita à representação da homossexualidade. Efectivamente, a homossexualidade já não é um tema em si mesmo, nem o motor dramático ou mesmo o assunto central do filme ou da série. Se é possível encontrar temas que são comuns a outros filmes e séries (como a saída do armário ou a questão da aceitação) o enfoque narrativo é muito mais sobre o quotidiano das personagens, fazendo com se ganhe uma universalidade que apela tanto a um público heterossexual como homossexual.

Sem usar termos como banalização ou normalização, de que não gosto realmente, o que perde é a marginalização da homossexualidade. É significativo verificar ainda que caminhamos de uma estética underground (como a que existia nos primeiros filmes do espanhol Pedro Almodóvar, no universo negro do realizador francês Patrice Chéreau, ou no ambiente trash de uma série como a inglesa Metrosexuality, de 2001) para uma estética mais mainstream. Weekend poderia ter sido assinado por um realizador da nouvelle vague. Looking é o parceiro homossexual de Girls [de Lena Dunham, também produzida pela HBO]. E tudo isso contribuiu para a acessibilidade de um público heterossexual. Mas a questão que fica no ar é se objectos como Weekend ou Looking podem agregar um público mais alargado [que o da comunidade homossexual].

Referiu, por diferentes vezes, em textos diversos que filmes e séries revelam que estamos perante uma nova categoria: o gay hipster. Como o podemos definir?
Por gay hipster refiro-me a uma resposta a representações precedentes homossexuais que tendiam a ser caricaturadas como os estereótipos, como o “gay diva” ou o “gay de ginásio”. Percebe-se que, com o avançar dos anos, houve uma vontade de virilizar a imagem e as representações da comunidade homossexual. Vivemos hoje o reinado do pêlo, da barba e do bigode, de um corpo menos asséptico e de físicos também mais regulares. Há também a tendência para se camuflar todo o lado carnavalesco e toda a ideia de feminilidade. Lembro-me de uma passagem de Torch Song Trilogy [filme de Paul Bogart, 1988] em que Harvey Fierstein dizia “quando os gays forem aceites, as drag queens perderão a sua razão de existir”. Isso é verdade mas é também verdade que sem as drag queens não teriam tido Stonewall [foi a partir do confrontos, em 1969, em frente ao clube Stonewall, em Nova Iorque, que começou a luta pública pelos direitos dos homossexuais].

Mas, após anos de militância onde a afirmação era uma necessidade, o gay hipster revela, por seu lado, uma vontade de integrar os circuitos já existentes. O modo de repensar a sua masculinidade não é diferente da de um heterossexual, com a qual partilha alguns desses códigos, de que a barba é apenas um exemplo. Acho que o gay hipster se aproxima muito mais do movimento queer que, à sua maneira, reconstrói modos de representação da imagem e da sexualidade. Mas o que é irónico é que, inconscientemente, o fenómeno hipster cria novos estereótipos. Só o tempo dirá se as personagens de Looking irão envelhecer tão bem quanto as de Queer as Folk [exibida entre 1999-2000 na versão inglesa; 2000-2005 na versão americana] .

Em França os dois filmes de maior sucesso de crítica e público, em 2013, foram A Vida de Adèle e O Desconhecido do Lago ambos de temática homossexual. E um outro filme, Les Garçons et Guillaume à la table! mostrou ser também um inesperado sucesso de público e foi recentemente nomeado para dez Césars. Em que medida é que estes filmes contribuíram para uma alteração do olhar que o cinema lança sobre a homossexualidade?
Gostaria de sublinhar que A Vida de Adèle fazia parte da competição oficial do Festival de Cannes 2013, ao contrário de O Desconhecido do Lago, o que mostra bem como a homossexualidade feminina, se é menos visível, é também mais fácil de aceitar (uma reminiscência de fantasias heterossexuais?). Mas o que me interessa referir é o facto de  esses dois filmes serem, para lá da questão homossexual e da sua representação, acontecimentos artísticos. Foi isso que comoveu a crítica e os tornou sucessos de público. De qualquer modo, atribuir a Palma de Ouro a A Vida de Adèle quando em França se estava em pleno debate sobre o casamento é um gesto altamente simbólico para todos. Essa Palma de Ouro permitiu ao filme beneficiar de um eco público (já para não falar das polémicas entre as actrizes e o realizador) e, desse modo, chegar a uma audiência mais alargada. Mas, mais importante ainda é o facto de o filme dar uma imagem forte e justa da homossexualidade feminina.

No caso de O Desconhecido do Lago não sei se o filme contribui para alguma alteração quanto à visão da homossexualidade. Desde logo porque o filme é bastante menos mainstream e, sobretudo, reactiva imagens antigas da homossexualidade com o seu lado de “Cruising naturista” [referência ao filme de William Friedkin Cruising, onde um assassino se infiltra na comunidade gay]. Mas uma coisa é certa, os dois filmes mostraram como a homossexualidade pode ser um tema cinematográfico sem que isso cause algum problema junto da crítica e do público.

O caso de Les Garçons et Guillaume à la table! é, dos três, aquele com um cariz mais popular [esteve também em Cannes mas na Quinzena dos Realizadores]. O realizador e argumentista Guillaume Gallienne é um actor conhecido (pertence à Comédie Française mas é sobretudo conhecido através da televisão com os sketches no Canal +) e, sobretudo, a comicidade do filme é eficaz e lúdica. Através desta história de coming out ao contrário, a sua personagem de heterossexual afectado, contraria os lugares-comuns e estilhaça todas as representações típicas ligadas à masculinidade e à sexualidade. A moral é tranquilizante (o suposto homossexual revela-se heterossexual) mas, através do seu talento e sinceridade, desdramatiza por completo a questão da homossexualidade. O que fica do filme é a ideia de que ele quase pede desculpas por não ser gay.   

Depois de séries como Queer as Folk ou A Letra L (mas também após séries como O Sexo e a Cidade ou outras, como Will & Grace, onde os homossexuais tinham um papel de destaque) é possível identificar quais são as expectativas, necessidades ou receios da comunidade gay perante objectos como Weekend ou Looking?
Séries como Queer as Folk e A Letra L [2004-2009; foi exibida pela RTP] ocupam, ainda hoje, um lugar importante na história das séries gays porque, pela primeira vez, as personagens gay não eram secundárias mas protagonistas. Essas séries dialogavam com o seu próprio tempo e partiam de estereótipos (em Queer as Folk: Brian, “o giraço”, Justin, o adolescente, Emmet, o drama queen, Michael, o gay lambda, aquele com quem todos nos podemos identificar, etc) ao mesmo tempo que procurava integrar uma certa verosimilhança na representação do quotidiano e das problemáticas específicas de todos os homossexuais. O filme Weekend e a série Looking surgem dez anos depois e revelam os avanços em matéria de direitos e visibilidade gay e o salto que se deu que prova que o estereótipo já não é suficiente. E mais, mostra ainda que se a homossexualidade é uma parte importante da composição das personagens e da narrativa, já não é uma problemática em si mesma.

A percepção do impacto de uma série como esta depende também do modo como se compõe e define a comunidade gay na Europa e nos Estados Unidos?
Em teoria acredito que todos procuram uma representação das suas vidas no cinema, nas séries ou na literatura. Séries como Queer as Folk e A Letra L contribuíram, e muito, para a criação de um terreno comum entre os gays de diferentes partes do mundo. Depois, na prática, há diferenças culturais e económicas que são substantivas.

Nos Estados Unidos, por exemplo, tenho a impressão de que a noção de “comunidade” está muito mais definida e enraizada e que, por isso, as expectativas sobre séries e filmes que girem em torno de personagens homossexuais sejam mais elevadas. Em França, a noção de comunidade, e mesmo a ideia de uma “cultura gay” ou de um “circuito gay”, é muito mais ambivalente. Ainda que nos possamos definir como “fora do meio”, continuamos a ir beber copos para o Marais todos os sábados à noite. Na altura do lançamento da PinkTV [2004], houve vozes que questionaram a pertinência de um canal gay e, para mim, essa pertinência não está em causa. Para lá do militantismo que pudesse justificar, à época, a decisão de a abrir, era também uma janela e um olhar sobre o nosso mundo que outros canais ou não ofereciam ou o faziam de forma muito esparsa.

A segunda razão é também ela económica. Nos Estados Unidos, dada a dimensão do território e a facilidade em distribuir os conteúdos noutros países, é mais fácil amortizar o investimento feito numa série ou um filme. Em França houve algumas tentativas no serviço público com uma série intitulada Clara Sheller [exibida pela France 4 entre 2005 e 2008], mas compreende-se que existam reticências dos produtores de televisão em investir em séries de ficção com personagens homossexuais.

Como se pode comunicar um filme ou uma série para um público mainstream?
Para mim a comunicação não deveria distinguir os filmes. Deveria chegar ao público-alvo sem ser exclusiva e, sobretudo, reforçar o lado artístico dos filmes. É isso que move os espectadores: uma história e o talento dos actores e do realizador. Mas é uma questão com a qual tenho de lidar frequentemente por associar parceiros na distribuição de filmes de temática LGBT. A questão coloca-se sobretudo no caso de filmes distribuídos por distribuidoras mainstream que surgem de um circuito essencialmente homossexual (e que podemos definir como filmes de festivais ou comunitários). De facto, esses distribuidores mainstream mantêm-se à margem e preferem não etiquetar os seus filmes com logotipos de media gay. Foi o caso de Brokeback Mountain [de Ang Lee, 2005], por exemplo ou, mais recentemente, com A Vida de Adèle, em que o distribuidor não quis que o website yagg.com, um dos mais activos e importantes se associasse ao filme.

Alguns distribuidores vão ao ponto de menorizar a questão homossexual nas sinopses e nos trailers de apresentação dos filmes. Temos a impressão de que a homossexualidade passou a ser mais aceite mas há ainda um tabu remanescente porque pode ser entendida como um argumento anticomercial. É uma fórmula de sucesso? Tenho dúvidas.
 
 
 
 

Sugerir correcção
Comentar