As “grandes exposições”, os museus e o provincianismo nacional

Aqui ninguém ousa actuar audaciosamente e acabar com as capelinhas (serviços centrais do Estado, autarquia, galeristas, museus), criando no imediato uma task force para pensar um pacote de museus e exposições a incluir na oferta turística.

Começo por tornar claro que os museus, na sua diversidade e função social, não se confundem, nem se subsumem, na programação, muitos menos no conceito, de “grande exposição”. Existem, aliás, razões justificadíssimas para que os museus olhem com desconfiança tal conceito.

Para o entender, basta ler a obra seminal do “pai” das grandes exposições, Francis Haskell, O Museu Efémero: Mestres Pintores Antigos e a Ascensão da Exposição da Arte, sendo que hoje existem numerosos autores a sublinhá-lo, tanto do lado dos museus (veja-se, por exemplo, Jean Clair e a sua Malaise dans les Musées), como do lado dos programadores e “promotores de eventos” (veja-se, por exemplo, as Top Ten Reasons why the Blockbuster Art Show is a Bad Idea, de Stephanie Tanner, na ArtSmacked de Fevereiro de 2012). Não nos enganemos, pois. As grandes exposições podem ser desastrosas, não servem para promover cidadania, nem sequer para formar públicos. Servem, sobretudo, para fomentar a actividade económica e por isso são altamente patrocinadas pelo capitalismo financeiro, ou, como mais pudicamente se costuma dizer, pelo “mercado”.

Dito isto, é claro que as “grandes exposições” podem constituir um instrumento útil de criação de riqueza (e, tal como ninguém deveria depreciar a cultura, preferindo a ignorância, também não julgo que ninguém deva desvalorizar a riqueza, preferindo a pobreza), sobretudo em países com forte investimento na “indústria turística”. E os museus podem e nalguns casos (mas não em todos) devem estar-lhes associados.

Ora, é mister reconhecer que entre nós este universo das “grandes exposições” tem sido dominado pelo amadorismo e falta de visão estratégica, aliados a uma espécie de “chico-espertice” bacoca de (pseudo)empresários e (pseudo)intelectuais irmanados na vontade dar nas vistas e fazerem uns trocos. Algo pode estar a mudar, porventura, nomeadamente no plano das joint ventures entre promotores de espectáculos e museus nacionais (citem-se os exemplos recentes no Palácio da Ajuda e no Museu de Arte Antiga). Mas tememos que não seja necessariamente para melhor, pelo menos até que sejam divulgados, como devem, os contratos estabelecidos e vejamos quais os investimentos de cada parte, qual a repartição de riscos e de proveitos, qual a relação e os efeitos na programação regular das instituições.

Porque de um “mercado global” se trata, vale a pena ver mais longe do que os limites da nossa paróquia. Faz agora quase um ano, The Art Newspaper publicou um relatório especial sobre a visita a museus e exposições em todo o mundo, em 2012. Consideradas as exposições que nesse ano conseguiram obter em média mais de um milhar de visitantes por dia (510 no total), Portugal surge apenas no segmento mais baixo (1500 a 1001 visitantes/dia), com sete exposições, todas no Museu de Serralves. Dir-se-ia, pensando provincianamente, que é assim porque somos pequenos. Nada a fazer.

Ora, não, não é nada assim. Feitas as contas de forma a poder ter uma aproximação à “quota de mercado” de cada país, ou seja, introduzindo coeficientes de ponderação para as várias categorias de exposição apresentadas na revista citada (valorizando mais as mais frequentadas), verifica-se que a grande potência universal deste dealbar do século XXI, os EUA, sendo de longe o país com maior número de exposições e visitantes, não chega todavia a possuir 1/3 da quota total. Espanha ocupa um espantoso segundo lugar, ex aequo com o Reino Unido. E na lista de duas dúzias de países constantes desta listagem, incluem-se alguns bem pequenos, assim como outros de enormes dimensões, é certo, mas níveis de desenvolvimento social e/ou de frequência turística bem inferiores aos nossos. O caso do Brasil, que surge em sexto lugar neste campeonato, é particularmente revelador – e, aliás, de um modo bem mais sadio. Nós próprios o sentimos, quando pela primeira vez desde sempre levámos ao Brasil (Rio de Janeiro e S. Paulo) um significativo lote de peças das colecções do Museu Nacional de Arqueologia, muitas classificadas como “tesouros nacionais”, e tivemos muito para cima de um milhão de visitantes, principalmente brasileiros, porque aí se investe a sério em qualidade e promoção.

Finalmente, como se conjugam “grandes exposições” e museus? A The Art Newspaper fornece os números dos cem museus de arte mais visitados no mundo. E as discrepâncias com a listagem anterior são notórias: diminuição para metade da quota dos EUA; aumento muito significativo da Europa (no caso da Itália, mais do que duplicação da respectiva quota). O contraste seria ainda maior se a lista fosse aberta aos 100 museus mais visitados no mundo, em todas as categorias, beneficiando os acervos (as colecções permanentes) em detrimento das mostras feitas à la carte (as exposições temporárias). E se aos dados anteriores juntássemos os que resultam de outras fontes (por exemplo, o The Global Attractions Attendance Report) e mais ainda os sucessivos relatórios ingleses relativos à economia dos museus, mormente os do Conselho dos Directores dos Museus Nacionais e da Associação Independente de Museus (todos disponíveis em linha), então, o nosso quadro de referência alargar-se-ia bastante e permitir-nos-ia verificar como não somente os fundamentos das políticas públicas (sejam elas executadas por serviços do Estado ou por privados), como a dimensão do fluxos de visitantes e sobretudo o efectivo retorno social, tudo está do lado dos museus. Em 2012 houve mais de 70 milhões de visitantes a museus na Europa (contra 58 milhões a parques temáticos). No Reino Unido, os museus nacionais geram economia em valor superior a mil milhões de libras e gastam cerca de metade, sendo que metade desta metade é obtida através de receitas próprias. Ou seja, por cada libra investida em museus, o Estado britânico proporciona ao país um retorno económico de 4 libras.

Se tudo isto é assim, por que será que em Lisboa, por exemplo, onde se situa o maior parque museológico do país, não existe uma única exposição, um único museu incluído nas estatísticas aqui citadas? E o primeiro que surgiria, alargando o critério, seria o Museu Berardo, com uma exposição em 2012 que atingiu uma média de 800 e picos visitantes por dia? Por que será que se trata tão displicentemente a venda ao estrangeiro de uma colecção de obras de Joan Miró que poderia até ser rentável (e parece admitir-se vender por metade do preço que um xeque árabe está disposto a pagar para fazer um museu no Abu Dhabi)? Porquê? É simples: porque aqui ninguém ousa actuar audaciosamente e acabar com as capelinhas (serviços centrais do Estado, autarquia, galeristas, museus), criando no imediato uma task force para pensar um pacote de museus e exposições a incluir na oferta turística de uma capital, que assim teima em continuar provinciana, sendo porventura a única onde cada um sabe de si e já nem sequer nenhum deus sabe de todos, porque se vê o estado a que chegámos.

Arqueólogo

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