As borboletas que pairam sobre os seus livros

Francisco José Viegas tinha 14 anos quando leu Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez (1927-2014). Agora, na morte do escritor, lembra-nos que reduzir a obra de García Márquez a uma espécie de solidão maravilhosa de contador de histórias é injusto para o miniaturista meticuloso e entusiasta que trabalha até à exaustão o seu universo de personagens e fontes de informação.

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Gabriel García Márquez fotografado em 2007 REUTERS/Tomas Bravo
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Um homem acende uma vela à porta da casa do Prémio Nobel da Literatura 1982 no dia em que ele morreu AFP PHOTO/Rafael BOSSIO

Foi a carrinha quinzenal da Gulbenkian que me emprestou o exemplar de Cem Anos de Solidão para ler no Verão de 1976. Naquela aldeia do Douro, debaixo do calor que anunciava as vindimas, as trovoadas e os incêndios das florestas, eu também ainda não sabia – mas o mundo tinha mudado em 1967, em Buenos Aires, onde o livro teve a sua primeira edição.

E, portanto, era impossível voltar atrás. Nunca mais fomos os mesmos, os que lemos Cem Anos de Solidão. É provável que exista alguma dose de lenda literária e cigana nas recordações de cada leitor, uma espécie de gente pouco fiável que por vezes acredita que, ao contrário do que se aprende, a vida que vem nos livros é que a verdadeira. Mas a impressão fica lá, registada como uma labareda, um risco no céu ou um relâmpago: a primeira vez que, em Macondo, Aureliano Buendía viu o gelo; a primeira vez que o telegrafista Florentino cruzou o olhar com Fermina, que havia de casar com Juvenal Urbino; o momento em que Santiago Nasar compreendeu que ia morrer e ainda recordava o perfume de Ángela Vicário; a visão de uma mulher a cantar a meio da noite durante a agonia do general Simón José Antonio de la Santísima Trinidad Bolívar y Palacios; a maneira como José Arcadio chegou à conclusão de que a Terra era redonda “como uma laranja” e o comunicou a todos, diante do desespero de Úrsula. E, finalmente, para abreviar, esta estranha coincidência: Úrsula morre numa “quinta-feira santa” tal como Gabriel García Márquez, quarenta e sete anos depois da publicação de Cem Anos de Solidão. A vida que vem nos livros é que é a verdadeira.

Quando García Márquez publicou A Revoada e criou a cidade de Macondo, em 1955, ainda não tinha lido Pedro Páramo, de Juan Rulfo, o livro que – como confessou mais tarde – lhe provocaria uma insónia tão poderosa como as que afectariam Úrsula em Cem Anos de Solidão (também foi em A Revoada que Aureliano Buendía apareceu pela primeira vez na história literária da América Latina). Imagina-se o clarão nas montanhas em redor de Comala, quando Juan Preciado se aproxima para conhecer o seu pai, Pedro Páramo, antes de descobrir que ele já tinha morrido, e que todas as pessoas que vai encontrando também já estão mortas.

Não é por saber da sua influência que, em 1982, Rulfo declara que finalmente há um Nobel atribuído com justiça: é porque nenhum outro autor tinha levado tão longe (e já tinha sido publicado O Outono do Patriarca) o projecto original, e nunca mencionado, de um romance que tornasse possíveis na terra as coisas que ou não tinham acontecido, ou – com toda a probabilidade – ninguém tinha acreditado que poderiam acontecer. É essa a grande virtude do romance moderno e o que o distingue da reportagem pura e simples: criar um mundo que vive independente, volátil e encerrado com as suas regras, a sua gramática, as suas especulações, as suas mortes, os seus assentos de baptismo, as suas guerras, os seus casamentos falhados, as suas hipérboles, a sua geografia, as borboletas amarelas de Maurício Babilonia.

E esse mundo tinha nascido em A Revoada, uma pequena novela que Maria da Piedade Ferreira publicou em Portugal nos anos 80: essas cento e vinte páginas eram o primeiro sinal do vírus. Estava lá tudo o que viria a acontecer em Cem Anos de Solidão, um romance tão definitivo que seria impossível corrigi-lo, cortar-lhe um capítulo, desfazer aquela geometria que Gabriel García Márquez dizia ser o produto de um trabalho solitário e incomunicável. Ou seja, como o próprio diz numa entrevista de 1981, um ano antes do Nobel – na altura da publicação de Crónica de Uma Morte Anunciada –, o autor sente-se “um náufrago no meio do mar”, completamente “sem defesa”.

Mas Cem Anos de Solidão é o epicentro dessa agitação: tudo converge para ele e, curiosamente, muitas personagens, histórias e lugares hão-de nascer dele para reaparecerem em novelas, contos, romances posteriores. O mundo tinha nascido. Para mim, tinha nascido naquele Verão de 1976 – dois dias antes do baile anual da minha aldeia e quinze dias antes da data de devolução do livro às estantes da carrinha Citroën da Gulbenkian, que mo tinha emprestado, o que foi uma imprudência de que nunca me arrependi. Como durante a minha primeira viagem à Colômbia, procurando os sinais daqueles personagens que, afinal, já tinham desertado. Restavam sombras, homenagens, sinais, restos de aventura, uma mitologia aprisionada – e a beleza extraordinária do seu mundo.

Muito mais tarde (esta expressão, só por si, há-de passar a evocar a primeira frase de Cem Anos de Solidão, porque todos a plagiámos no que escrevemos ou no que queríamos ter escrito), quando o tempo permitiu compreender melhor essa geração a que pertenciam os loucos originais da segunda geração do “realismo mágico” (na primeira estavam Rulfo e Borges, naturalmente, e Carpentier e o barroco de Lezama Lima), como García Márquez, Vargas Llosa ou Cortázar. A Europa, que tinha criado a ideia do “bom selvagem” (e, mais tarde, por vício, a do “bom revolucionário”), redescobriu com essa designação a vibração heróica de uma arte do romance de que já se tinha despedido e que já tinha entregue aos arquivos como uma “forma burguesa” e novecentista. Com Cem Anos de Solidão e as obras de García Márquez, os mortos voltaram a falar, os mapas do mundo redesenharam-se, as “doenças da fantasia” acabaram por revelar uma história humana em que generais loucos e ditadores sanguinários morriam várias vezes, em que mulheres solitárias e melancólicas se apaixonavam e aprendiam a voar sobre as florestas, em que revolucionários sem esperança readquiriam o riso da infância. Nesse mundo podia existir Úrsula, que haveria de morrer demente, depois de uma vida consagrada a amparar e a obrigar a sua família a sobreviver durante décadas de histórias maravilhosas ou brutais; e podia existir Candida Eréndira, suportando a brutalidade e elevando-se sobre a dor; e podia existir “o general” que, vítima da ingratidão das multidões da Grande Colômbia, decide partir para a Europa – sem nunca chegar a fazê-lo, porque os seus compatriotas se perdem em celebrações e conspirações, ontem como hoje.

Mas reduzir a obra de García Márquez a esta espécie de solidão maravilhosa de contador de histórias (a sua mulher, Mercedes, todos os dias lhe trazia flores amarelas para o escritório, como se fosse uma Úrsula igualmente supersticiosa) é injusto para o miniaturista meticuloso e entusiasta que trabalha até à exaustão o seu universo de personagens e fontes de informação. Contam, contaram sempre, para isso, os instrumentos do jornalista – e a ideia de criar sempre um ponto de apoio onde o universo assentasse: as primeiras frases de Cem Anos de Solidão e de Crónica de Uma Morte Anunciada são esse ponto de apoio, por exemplo. Esta última, aliás, é um prodígio de construção, um monumento de detalhe e de música – se o seu grande romance de 1967 é uma viagem interminável pela Grande Colômbia (ou, como o próprio disse, apenas a inspiração da sua juvenil Aracataca – mas não podemos acreditar nos escritores), a Crónica é uma montagem que nenhum adjectivo pode resumir. História de um crime, sim; mas sobretudo a demonstração de outra brutalidade: a da literatura propriamente dita. Como se García Márquez tivesse decidido mostrar como o talento puro funciona, não acrescentando nada às paisagens desertas, para que elas fiquem desertas; nem roubando nada aos altares barrocos onde aqueles personagens procuram enfrentar e apressar o confronto com a morte, porque aquele mundo produz exactamente aquele barroco. A Europa, velha e esgotada, teria de sucumbir a este desafio. E ficar – como todos os seus leitores – a procurar as borboletas amarelas de Maurício Babilonia.

O seu célebre discurso de agradecimento do Nobel, em 1982, é uma invocação dos demónios da América Latina: o lamento pela sua solidão (é esse, aliás, o título do discurso) e pelas agressões de que foi vítima, e a sugestão de que a literatura é a arma de que dispôs para as combater (teria sido preferível que fosse apenas assim). Mas os escritores, independentemente de cometerem erros de avaliação e de baixarem a guarda mais facilmente, permanecem escritores maravilhosos não por terem apoiado Fidel ou por terem sido apanhados nas malhas da suspeita – mas por terem repetido o milagre de Sherazade, todas as vezes que forem necessárias para alimentar a nossa fome de histórias. Neste caso, a literatura depois de Cem Anos de Solidão e da sua complexa engenharia sentimental e imaginária nunca mais poderia voltar atrás. García Márquez tinha desenhado uma tão grande galeria de personagens e de episódios que cada leitura dos seus grandes livros se transforma numa visita ao esplendor do romance.

A Colômbia já não é assim (sobretudo depois de Hector Abad Faciolince, Juan Gabriel Vásquez, Evelio Rosero, Santiago Gamboa ou Jorge Franco); a América Latina também já não é assim (sobretudo depois de Roberto Bolaño, que criou Santa Teresa, a anti-Macondo). Mas teria sido impossível sem que Gabriel García Márquez a tivesse inventado para que, por instantes, as borboletas pairassem sobre as ruas. A vida que vem nos livros é que é a verdadeira.

Escritor

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