Amália e Rui Valentim de Carvalho

Um texto escrito por Maria Nobre Franco, mulher de Rui Valentim de Carvalho, para uma exposição dedicada à relação da fadista com o editor no Museu Fado em 2009.

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Com o seu jeito tímido e discreto, Rui conheceu Amália em 1948. Ouvi-la já o emocionava. Falar-lhe, admirar a sua beleza e o seu talento, tornou-o grande admirador. O seu editor. O amigo incondicional que a acompanhou sempre. Até ao fim da sua vida.

Ser editor era uma maneira de exprimir a sua criatividade e o seu espírito empreendedor. A técnica era a razão de ser do seu trabalho. Nesse sentido, foi um pioneiro. Convenceu o tio, fundador da empresa, a comprar o terreno de Paço de Arcos, para construir uma fábrica de discos e um estúdio de gravação de som.

Até então, as gravações eram feitas no primeiro andar da loja da Rua Nova do Almada, numa máquina RCA que gravava directamente para um disco de 78 rotações. Não se podia ouvir o que se gravava. O resultado seguia para Inglaterra. As provas demoravam 15 dias a chegar - mas os discos mesmo levavam mais tempo. Vinham de barco e às vezes os barcos eram afundados, por causa da guerra... A fábrica de discos Valentim de Carvalho no Campo Grande era dedicada unicamente à prensagem de 78 rotações.

Em 1952, por iniciativa de Rui, realizou-se a primeira gravação de Amália para a Editora Valentim de Carvalho. Em Londres. Num estúdio célebre: Abbey Road. A partir desse momento, Rui Valentim de Carvalho sonhou um estúdio à semelhança do que vira em Londres. Com o mesmo tipo de máquinas, a mesma qualidade. Para gravar mais e melhor.

Hugo Ribeiro conta que Rui foi a Londres escolher as máquinas EMI e Magnetophon, iguais às de Abbey Road. Com elas ainda se gravou na Rua Nova do Almada e no Clube da Estefânia, onde as gravações eram interrompidas pelos barulhos do bilhar e dos pavões do jardim. Para ter um espaço com melhores condições, criaram o estúdio da Costa do Castelo, em 1950 (onde hoje é o Teatro Taborda). Aí se gravou O Fabuloso Marceneiro, de Alfredo Marceneiro.

Em Paço de Arcos, por escolha de Rui, o projeto da fábrica teve a autoria dos arquitetos Conceição e Silva e Tomás Taveira. O estúdio foi concebido, ainda nos anos 50, pelo Arquitecto Calvet de Magalhães e liderado, na montagem de equipamento e testes acústicos, por engenheiros de Abbey Road. Em 1960, ficou pronto. Em 63, a laborar normalmente, conquistou um tal prestígio que atraiu a Portugal nomes como António Machin (de Cuba), Joan Manuel Serrat e Julio lglesias (de Espanha) Cliff Richard e os Shadows (de Inglaterra) ou Vinicius de Moraes e Sivuca (do Brasil), entre muitos outros.

Também em 1963, foi gravado e misturado o primeiro filme no Estúdio. Com o sistema Westrecks, usado pela primeira vez em Portugal. Um filme maior do cinema português: Belarmino de Fernando Lopes. A assinalar um marco histórico na Valentim de Carvalho.

Muitas fotografias que poderiam testemunhar estes acontecimentos arderam no incêndio do Chiado uma tragédia na vida de Rui, da empresa, de Lisboa e do País. Fotografias dos grandes concertos de Amália em Hollywood Bowl com o Maestro Kostelanetz, no Lincoln Center (em 1966) no Carnegie Hall (em 75 e 77), no Japão, no Olympia de Paris, onde ele esteve sempre presente. Como escreveu Vítor Pavão dos Santos, na biografia da artista: “Rui não perde uma atuação de Amália, seja lá onde for”.

Foi um editor exemplar. Continuou a criar e a dirigir os projetos de Amália, acompanhado pelo seu colaborador João Belchior Viegas, pelo notável Hugo Ribeiro, o engenheiro de som preferido por Amália, por José Carvalho e por Fernando Cortez.

Como administrador, passou a bola aos jovens. A acreditar que era possível ultrapassar os maus momentos, num mundo onde o audiovisual não pára de mudar.

Hoje, muito doente, tem ainda no entanto, um nome mágico na sua memória Valentim de Carvalho.

Setembro de 2009
 
 
 

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