A vida dos pintores também é pintura

A Christie’s vai levar a leilão parte da história de Francis Bacon e George Dyer, num retrato que, espera, venha a atingir pelo menos os 36 milhões de euros.

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Portrait of George Dyer Talking DR

Francis Bacon e George Dyer conheceram-se no Outono de 1963, no Soho londrino, e, segundo alguns autores, o artista britânico de 54 anos deixou-se fascinar de imediato pela fragilidade do homem que tinha à sua frente. Seriam amantes entre 1964 e 1971, ano em que Dyer, que tinha praticamente metade da idade daquele que é considerado um dos maiores pintores do século XX, foi encontrado morto num quarto de hotel em Paris. Dizem historiadores e biógrafos que a relação de ambos se deteriorara a partir de Novembro de 1968, com Bacon a tentar afastar-se de Dyer, cada vez mais afundado na bebida.

Certo é que a morte do modelo – aparece em muitos dos seus estudos e pinturas da década de 1960 – viria a marcar a sua obra nos anos seguintes, levando-o a criar alguns dos seus retratos mais celebrados. Um deles, um dos poucos em que Dyer aparece de corpo inteiro ainda nas mãos de coleccionadores privados, vai à praça a 13 Fevereiro, em Londres, por um valor que, estima a leiloeira Christie’s, venha a atingir, pelo menos, os 36 milhões de euros.

Portrait of George Dyer Talking é uma obra de 1966 e integrou a retrospectiva que o Grand Palais, em Paris, dedicou a Bacon em 1971 – um marco na sua carreira, mas também na sua vida. O retrato apareceu no mercado de leilões pela última vez em 2000, quando foi vendido por 4,8 milhões de euros (ao câmbio actual).

A Christie’s não esconde o seu entusiasmo à volta da noite de 13 de Fevereiro. Afinal, foi esta leiloeira que no final do ano passado fez com que um tríptico em que Bacon retrata o seu colega e amigo Lucian Freud se tornasse a obra mais cara alguma vez vendida em leilão. Revela a imprensa desta quinta-feira que foi a norte-america e multimilionária Elaine Wynn, ex-mulher do magnata dos casinos Steve Wynn, quem pagou 106 milhões de euros por Três estudos de Lucian Freud, no fim de uma disputa em Nova Iorque, que durou apenas dez minutos.

É precisamente por causa do valor que o tríptico atingiu em Novembro que Francis Outred, chefe do departamento de arte do pós-guerra e contemporânea da Christie’s, tem grandes expectativas. “É estimulante poder dar seguimento ao sucesso [do tríptico] levando à praça este retrato – um tour de force – de George Dyer, que foi, possivelmente, um dos maiores amores de Bacon”, disse Outred, aqui citado pela Reuters.

A pintura de 198X147cm mostra Dyer sentado num banco, sob uma lâmpada, com o rosto distorcido que é a imagem de marca de Bacon, e fez parte da maioria das mais importantes exposições do artista britânico.

A arte e a vida

Um dos elementos que pode vir a contribuir para aumentar o interesse à volta desta pintura é o facto de ela estar intimamente ligada à história pessoal de Francis Bacon, que morreu em 1992, aos 82 anos. Afinal, a relação que manteve com George Dyer foi uma das mais duradouras, ainda que tempestuosas, da sua vida. E a morte deste modelo-amante foi algo que, admitiu a vários amigos, nunca conseguiu ultrapassar. O Tríptico, Maio-Junho 1973, em que regista o momento da morte de Dyer, foi uma tentativa para “exorcizar” os seus sentimentos de culpa e de perda.

Muitos dos retratos em grande escala de Dyer estão hoje na colecção de alguns dos melhores museus do mundo. Durante a década de 1960 e na primeira metade da seguinte, Bacon pintou-o quase obsessivamente, mais do que a qualquer outro modelo na sua carreira.

Escreve a historiadora de arte Lorna Healy na entrada que lhe dedica no Dictionary of Artist’s Models, que sobreviveram 16 retratos e estudos com Dyer no título e que há “pelo menos mais dez” em que o homem representado parece ser ele. Healy fala, inclusive, num “tipo Dyer” na obra do artista – figuras masculinas com os músculos bem definidos, em que o pintor presta particular atenção às costas, pernas e ombros.

Dyer, lembram os biógrafos de Bacon, era um homem bonito, que gostava de copiar o estilo dos irmãos Kray, gangsters que marcaram o East End dos anos 1950 e 60, sempre impecáveis nos seus fato e gravata. Mas o artista desenha-o várias vezes em roupa interior branca, como, aliás, aparece nos curiosos retratos que John Deakin dele faz no estúdio de Bacon. O fotógrafo e o pintor eram amigos.

Bacon e Dyer não podiam ser mais diferentes, garante o historiador de arte britânico Martin Harrison, que passou os últimos anos a trabalhar o património documental do espólio Bacon. E não era apenas a idade que os separava. 

Diz Harrison, citado pelo jornal australiano The Sydney Morning Herald, que, como boa parte dos génios do mundo das artes, Bacon era muitas vezes egoísta, exigente e extremamente cruel, mas também sabia ser sedutor e generoso. Dyer era viciado em cigarros e bebida e, apesar de fisicamente robusto, era um homem frágil. Até conhecer o pintor, vivia de esquemas pouco claros e terá chegado, segundo o próprio Bacon, a tentar roubar-lhe duas obras do seu estúdio dias antes de uma exposição na Tate, em 1962, informação que muitos não confirmam, mas que consta de uma das cenas de Love Is the Devil (1998), um filme da BBC sobre a relação de ambos, com Derek Jacobi e Daniel Craig nos principais papéis.

“Bacon sentia-se atraído por personagens do submundo que, tal como o seu lado negro, gostavam de se encontrar em clubes manhosos, de beber, de jogar e de serem promíscuos. Adorava correr riscos na arte e na vida. Dyer tinha uma educação pobre, não percebia nada de arte, mas venerava-o e respondia aos seus pedidos como um cachorrinho – o que o punha em risco absoluto”, lembra o historiador.

Bacon mantinha uma rotina: trabalhava sozinho, em silêncio, entre as seis da manhã e as duas da tarde, hora a que se vestia elegantemente para sair e almoçar num restaurante caro, onde por regra pedia ostras e champanhe. Depois seguia para um dos bares do Soho frequentados por artistas e escritores, quase sempre o Colony Room.

Ainda segundo Martin Harrison, “Bacon era essencialmente um solitário”, não permitindo que os seus amantes fixassem residência em sua casa. Preferia comprar-lhes apartamentos que não ficassem longe do seu. Nas relações interessava-lhe sobretudo o sexo, não uma combinação doméstica que viesse a pôr em causa os seus hábitos. Eram poucos os amigos que entravam no seu estúdio caótico, com tintas, pincéis e papéis espalhados por todo o lado, reproduções dos clássicos nas paredes e centenas de fotografias recortadas, dobradas e rasgadas, que muitas vezes usava para criar os rostos disformes, contorcidos, das figuras que pintava.

O princípio do fim

À medida que foi consolidando o seu sucesso, ganhando muito dinheiro, Bacon começou a fartar-se de Dyer e tentou afastá-lo. Mas, nessa altura, já o jovem era totalmente dependente dele – e da bebida. A relação de ambos já estava praticamente destruída quando, em Setembro de 1970, o artista foi preso no seu estúdio por posse de cannabis, conta Lorna Healy. No julgamento que se seguiu, em Junho, Bacon não fez qualquer referência à natureza sexual da sua relação com o modelo, porque a homossexualidade tinha sido considerada crime em Inglaterra até 1967.

Apesar do afastamento, Dyer viria a juntar-se ao grupo que acompanhou Bacon a Paris para a grande exposição de 1971, a retrospectiva que contribuiria de forma decisiva para a sua internacionalização. Mas, 36 horas antes da inauguração, tomou uma dose letal de soporíferos com álcool. As descrições do cenário em que é encontrado no seu quarto no Hotel de Saint-Pères, no dia da abertura no Grand Palais, são cruas: ingeridos os comprimidos, terá vomitado no lavatório e, depois, o seu corpo caiu sobre a sanita. Bacon conseguiu afastar a palavra “suicídio” do relatório policial, embora, alegadamente, Dyer o tivesse tentado já duas vezes. E continuou com os planos originais da inauguração, fazendo até uma visita guiada ao Presidente Georges Pompidou.

A década que viveu com Dyer e parte da seguinte são para muitos as melhores da carreira deste pintor, que sempre privilegiou a boa aparência em si e nos outros e rejeitou falsas modéstias. Dizia que “uma figura agradável era uma perpétua carta de recomendação” e que se tornara artista, e não vigarista, ladrão ou prostituto, por vaidade.

O retrato que a Christie’s se prepara para levar a leilão é uma parte desta história em que “os sentimentos de desespero e infelicidade são mais úteis ao artista do que os de contentamento”. História que, por regra, fica fora dos catálogos dos artistas, algo que Jonathan Jones, crítico de arte do diário britânico The Guardian, define como “impersonalidade bizarra”. “Os artistas, ao que parece, têm duas vidas”, escreve Jones, “uma em que sangram, e outra feita de exposições e de trivialidades que é reconhecida pelas publicações oficiais.”

 
 
 
 
 
 
 
 

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