A vida de um cenário em dois novos livros

Dois livros de dois cenógrafos que mostram percursos e diálogos entre a cenografia e o teatro. Ou como o palco nunca é um espaço que se preenche mas sim que se habita

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Cenografia de José Caplea de 2011 para Memorabilia
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Cenografia para A Gaivota , de Tchekhov, feita em 1982 por Castanheira

No magro panorama editorial dedicado à cenografia teatral, o fim do ano traz-nos, coincidentemente, dois olhares, e dois discursos, que contribuíram para pensar de que modo a cenografia propõe “uma micro-geografia para a representação”: José Manuel Castanheira (Castelo Branco, 1952) e José Capela (Maputo, 1969).

Os cenógrafos juntam-se assim a Cristina Reis (Teatro da Cornucópia - Espectáculos de 1973 a 2001), João Mendes Ribeiro (Arquitecturas em Palco, 2007) e João Brites (Máquinas de Cena, 2005; Do Outro Lado, 2011) no restrito grupo de cenógrafos que, editando uma antologia do seu trabalho, permitiram voltar a olhar para partes da história do teatro contemporâneo português.

Castanheira Cenografia (Caleidoscópio), lançado no sábado no Teatro Nacional Dona Maria II, em Lisboa (do qual Castanheira foi co-director, entre 2006 e 2008), resume o percurso de mais de 40 anos de cenografias feitas para 200 encenações, estreadas dentro e fora de Portugal. As suas 250 páginas defendem-se como uma selecção de projectos através dos quais é possível mostrar o processo de trabalho e um dos mais prolíficos autores nacionais de cenários. “Quis mostrar o que seriam os meus processos desde o primeiro estímulo à produção e até o pós-exibição”. Ou seja, “contar a vida de um cenário”.

Modos de Não Fazer Nada olha para algum do percurso da companhia Mala Voadora, da qual José Capela é co-director artístico, expondo, de modo pragmático, as soluções encontradas para um diálogo cúmplice com as encenações de Jorge Andrade, também director artístico. O livro foi lançado na sexta-feira, no encerramento do programa do décimo aniversário da Mala Voadora, no teatro Maria Matos, em Lisboa. No sábado, no Porto, é apresentado como parte da festa de abertura do novo espaço da companhia na Rua Nova do Almada.

José Capela defende uma cenografia “muito directa e pouco interventiva”, num constante diálogo que impede que se determine se é a encenação que decorre do cenário ou o cenário que vai criando uma dramaturgia do espaço. Do mesmo modo, José Manuel Castanheira defende uma cenografia que saiba fugir “ao facilitismo e ao imediatismo”.

Sobre o trabalho de Castanheira no livro o teatrólogo franco-romeno Georges Banu fala da memória como uma "paisagem que se traz consigo sem se ser totalmente dono dela” e o crítico João Carneiro de imaginação e de imagens que “sugerem um mundo de realidade e de invenção, de sobreposições de planos em que o real, o imaginado, o fantasioso, o plástico, o emocional, o racional se articulam e se confundem em objectos surpreendentemente verdadeiros”.

São portas de entrada para um universo que o próprio define como “uma micro-geografia para a representação”. “Em cada espectáculo existe o depósito total da vida e um risco enorme de a correr”, escreveu o cenógrafo sobre O Verão (1989, Grupo de Teatro Hoje, encenação Carlos Fernando), para falar de uma relação de cumplicidade e diálogo que procurou sempre manter com os encenadores. Cumplicidade e diálogo esses que não são senão formas de se ser fiel a um princípio teatral: estabelecer “um permanente e intenso diálogo com as matérias-primas do espectáculo”. Banu releva do percurso de Castanheira uma “reflexão sobre o lugar do espectador, muitas vezes colocado na intimidade do palco, em lugares inesperados, já que, José sabe-o, mudar a distância ou o ângulo de visão afecta sempre a sua percepção.”

Castanheira fez parte da renovação estética do teatro português, assinando a sua primeira cenografia em 1973 (Pequenos Burgueses, encenação Fernanda Lapa, Grupo de Teatro da Trafaria), e com o tempo foi tendo uma presença mais assídua nos grandes espaços e instituições, com encenações para óperas e espaços ao ar livre.

O gesto de Castanheira foi-se definindo através de “uma confiança nunca desmentida na expressão de um artista livre que pode passar sem restrição da arborescência barroca à redução íntima, da expansão dos materiais 'cénicos' cujo artifício é assumido à virtude moral dos trabalhos em madeira e dos tecidos presentes na sua expressão mais pura”.

De certo modo, também o trabalho de José Capela - que se distancia, na escala e nos meios, do trabalho de Castanheira, por pertencer a uma geração que começou a trabalhar na adequação a uma prática e a um discurso, comummente denominado como pós-dramático, e por isso sem hierarquias - vai à procura da liberdade e da intimidade de que fala Banu. Mas, por haver uma aproximação clara às artes visuais, e nomeadamente a estéticas e discursos que questionam as fronteiras da representação e da identificação, Capela opera nas suas cenografia a evocação de um espaço que existe para lá do palco. Tal como em Castanheira há um diálogo constante com a literatura, ou seja, o espaço imaginado. Em ambos, o mesmo desejo de pertencer a um espaço, mais do que o ocupar.
 
 
 
 
 

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