A sensibilidade dos Belle & Sebastian na despedida em grande de Paredes de Coura

No último dia do festival, dos Calexico aos Palma Violet ou aos Ducktails, houve muito, e muito bom, para ver.

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Belle & Sebastian PAulo Pimenta
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Últimos banhos em Paredes de Coura Paulo Pimenta
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Animação nas primeiras filas junto ao palco Paulo Pimenta
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Paulo Pimenta

Ouve-se então Assim falava Zaratustra, de Johann Strauss, e as gentes agitam-se, o povo corre porque tem que correr para ver tudo muito bem enquanto outro povo, cansado de cinco dias de actividade e de noites longuíssimas, se mantém imperturbável (leia-se a dormir o sono dos justos, insolentemente esparramado da relva, grosseiramente indiferente às movimentações à sua volta). Assim falava Zaratustra, o épico, usado como Stanley Kubrick nunca imaginaria: como porta de entrada no DJ set dos Justice que encerrou oficiosamente a 21.ª edição do festival Paredes de Coura. Oficiosamente porque depois dos flashes, das passagens por Marvin Gaye, 2 Unlimited, Dandy Warhols, funk e disco e techno e Don’t stop me now, dos Queen, para encerrar a festa em delírio comunal, ainda houve actividade no recinto até altíssima madrugada.

O DJ set dos Justice - “portentoso espectáculo de luz e som protagonizado por dois guedelhudos franceses que a juventude deveras aprecia”, dir-se-ia caso o festival estivesse a ser coberto pela RTP na década de 1970 (e não haveria imagens, já que a banda proibiu os fotógrafos de fazer o seu trabalho) -, funcionou como celebração final. O duo ofereceu a música, o anfiteatro foi discoteca e esta discoteca era uma discoteca especial. Há mosh e crowd surf e vê-se ao longe, entre o público, uma cruz (indispensável na iconografia da banda) construída com caixas de sapatos e muita fita adesiva ser engolida pela multidão. Passamos por duas figuras com máscara de cavalo dançando perto de um baloiço, observamos ao longe um rapaz com máscara de lobo e um admirável corajoso coberto de lycra verde, um alien da cabeça aos pés – cerveja na mão, conversa com os amigos do lado, tudo normal, é o último dia de festival, “no pasa nada”.

O quarto dia do Paredes de Coura, sexta-feira, fora, como titulámos, “calmo, demasiado calmo”. Felizmente, foi só para enganar: sábado, na despedida, não houve tempo a perder. Tantos focos de interesse. As maravilhosas canções dos Belle & Sebastian a aquecerem-nos o coração e os Calexico em viagem transfronteiriça com trompete mariachi e guitarra pedal steel. Salsa com country dentro e uma versão de Alone again or, dos Love, ou de Love will tear us apart, dos Joy Division, porque há que ser generoso com aqueles entre o público que não sabiam ao que vinham. Isto já com a noite caída sobre o anfiteatro natural, com o sempre incrível céu tão estrelado que o protege e o cenário sempre irresistível das árvores tão altas, tão frondosas e tão iluminadas que se erguem por trás do palco principal.

Antes, à tarde, os Ducktails de Matt Mondanile, maravilha dolente, música solar que faz da introspecção uma arma (mas que rocka muito, eléctrica e muito elegante quando a ocasião o pede), trouxeram as canções para fazer esquecer por momentos os Real Estate (a outra banda de Mondanile) que gravaram no óptimo The Flower Lane e anteciparam o futuro com algumas guardadas para nova edição. De caminho, inauguraram uma tendência deste último dia de Paredes de Coura. “Portugal é o meu sítio preferido”, exclamou Mondanile algures, antes de informar que a banda gostou tanto de tudo isto que decidiu ficar mais uns dias pela região e que muito agradecia se alguém os acolhesse. “Somos quatro bons rapazes”, disse então e são mesmo e esperamos que estejam por esta altura muito bem alojados entre Douro e Minho. A tendência foi, então, o elogio ao festival e às suas redondezas. Horas depois, Joey Burns, dos Calexico, estaria a declarar o seu amor ao Minho e ao seu vinho (“o branco, o tinto, o verde, o Touriga Nacional”). Stuart Murdoch, pelos Belle & Sebastian, lá falaria do rio e do banho que não tomou no Coura mas que gostaria de ter tomado (“se ainda fosse um homem jovem”), lá falaria de como o cenário que encontraram é bonito e bonitos são eles, os Belle & Sebastian, mas Murdoch tem razão.

Em 2014 há mais

Quando o palco principal encerrara actividade e a animação se transferira para o Vodafone FM, os norte irlandeses And So I Watch You From Afar, gente de nervo pós-rock sem espaço para subtilezas, impressionados com o fervor posto no estoirar dos últimos cartuchos pelo público, soltariam um “vamos voltar, temos que voltar”. E muitas horas antes, os londrinos Palma Violets, uma das boas surpresas deste último dia, banda com um álbum no currículo, 180, músicos com os discos de Undertones, Clash (e um par de compilações de garage da década de 1960) bem digeridos e transformados em canções à beira do descontrolo (mas sempre com destino certo bem definido), haveriam de improvisar um comicamente sincero “Portugal I love you, and I always will”.

Uma das suas canções tem por título Step up for the cool cats e eles não estão aqui para enganar ninguém. Havia muitos a esperá-los e a celebração não demorou: corpos surfando sobre a multidão, a banda a entregar-se nos braços do público, o novo punk para uma nova geração a iluminar a tarde quente. Despediram-se com 14, só guitarra e bateria (o teclista e o baixista dançavam, saltavam, mergulhavam entre o público), abraço final entre banda e plateia. O último dia do Paredes de Coura 2013 foi precisamente isso. Um longo abraço, ora terno e reconfortante, como aconteceu com os Belle & Sebastian, ora intenso e selvagem, como no mosh pit aberto nos Palma Violet, no crowd surf com o rock’n’roll muito negro, visceral do power trio Bass Drum Of Death, na viagem magnífica dos barcelenses Black Bombaim, acompanhados pelas teclas de Shella, pelos saxofones de Pedro Sousa e por um theremin que deu nova camada a estas digressões psicadélicas tão intensas quanto exploratórias.

Olhando em frente, registam-se os factos: a edição 2014 está assegurada e as datas e a primeira banda em cartaz serão anunciadas brevemente. Em balanço muito factual, registam-se as cem mil entradas contabilizadas pela organização ao longo dos cinco dias de festival, três mil das quais de público estrangeiro vindo maioritariamente de Espanha. Guarda-se na memória a enchente para Alabama Shakes, o magnífico psicadelismo dos Unknown Mortal Orchestra e o transe tuaregue de Bombino.

Continua-se a debater a performance dos The Knife e a lembrar a festa pop dos Hot Chip ou a perfeição indie dos Veronica Falls. Porque gostamos tanto dos seus álbuns clássicos, lutamos para esquecer o concerto dos Echo & The Bunnymen. E porque o rock’n’roll é uma expressão tão viva e tão libertadora, a memória da aparição a meio da tarde de quinta-feira dos Glockenwise continua a deixar-nos um sorriso no rosto. E depois há o festival para além das bandas: as ruas da vila ocupadas sem resistência, o ambiente bucólico retemperador, as margens do rio Coura e a sensação de que todo este cansaço bom que cai sobre nós ao fim de cinco dias é um conforto para o espírito de quem vê na música um mapa de vida muito preenchido. Para muitos dos que estavam sábado no Paredes de Coura, os Belle & Sebastian estão nele abundantemente representados. Perfeito, portanto, vê-los na despedida em grande de um festival como este.

Foram, nos anos 1990, refúgio seguro das inseguranças de quem apanhava então com a vida de frente. Foram vitória da sensibilidade de quem quer encontrar sentido nas coisas, trouxeram Bacharach e a Motown (e os Smiths e os Feelies e por aí fora) para novas canções. Ofereceram-nos um guia que podíamos seguir, conduzidos pela Sukie que passeia pelo cemitério, pelo Boy with the arab strap, pela Judy and the dream of horses – só para ficarmos por canções visitadas no concerto.

Hoje, Stuart Murdoch pode ser velho para ir dar uns mergulhos no rio, mas as canções, estas canções interpretadas pela trupe de músicos (a que se juntaram quarteto de cordas e metais português), não têm uma ruga que seja. A terceira passagem por Portugal, depois de um Sudoeste de 2002 e de um Coliseu lisboeta em 2006, mostrou-o novamente. Nos rostos de quem estaria a aprender a ler quando os Belle & Sebastan editaram Tigermilk, o álbum de estreia, em 1996, e que cantava letra após letra nas primeiras filas. Nos passos de dança do muito feliz Stuart Murdoch; no sorriso do seu fiel escudeiro, o guitarrista Stevie Jackson; na forma como recebíamos canção após canção como conhecidas de longa data que não perderam nenhum do encanto – I want the world to stop é desejo que não nos abandonou e as Stars of track and field são tão bonitas como quando lhes pusemos os olhos pela primeira vez.

Bolas de sabão atravessam o ar enquanto ouvimos Sukie in the graveyard e o cenário não podia ser mais apropriado – até porque a delicadeza da música dos Belle & Sebastian esconde manchas negras sob a superfície límpida. Dançamos depois o stomp Motown de If she wants me, vemos Stuart Murdoch chamar pela segunda vez público ao palco porque dançar sozinho não tem piada e duas mãos cheias de gente juntam-se à gente que tocava Simple things. Já não há separação entre palco e plateia e Boy with arab strap e Legal man depois dela são cantadas por um Stuart Murdoch rodeado de rostos felizes. Chega Judy and the dream of horses, essa Judy que “who never felt so good except when she was sleeping”. Chega o encore, Murdoch avisa que só há tempo para mais uma canção e pensamos no que ouvimos e no que queríamos ainda ouvir. Não ouvimos Like Dylan in the movies. Veio Get me away from here, I’m dying. Não ficámos a perder, ficámos de alma preenchida.

O delírio Justice seguir-se-ia dentro de momentos. A edição 2013 de Paredes de Coura despedia-se. Uma despedida em grande.
 
 
 
 

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