A romântica Ute Lemper canta Pablo Neruda, o poeta visionário, em Lisboa

Concerto esta sexta-feira no Centro Cultural de Belém mostra uma cantora à procura de palavras que signifiquem liberdade

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Ute Lemper canta os poemas de Pablo Neruda no Centro Cultural de Belém DULCE FERNANDES/ARQUIVO

Ute Lemper gosta de cicatrizes, de falhas, de erros. “Gosto de experimentar. As palavras são experiências. Cantá-las, dizê-las, usá-las, senti-las”. Cantar os poemas de Pablo Neruda, como fará esta sexta-feira no Centro Cultural de Belém é, por isso, diz-nos ao telefone, “um modo de as poder viver”.

O Prémio Nobel da Literatura em 1971 foi “o maior do século XX em qualquer língua”, disse Gabriel Garcia Márquez, e para a cantora e actriz, as palavras do poeta chileno são “uma forma de liberdade”. 

O Neruda que Ute Lemper mostra não é o Neruda político. Ou é-o, se consideramos que a poesia de Neruda ambicionava a descrição de um mundo utópico. E, por isso, deveríamos substituir a ideia política pelo perigo da ideologia. Este é um Neruda sem ideologia, alerta-nos. “Um poeta mais visionário”. E, nesse sentido, Ute Lemper queria dar às palavras de Neruda, às imagens que os seus poemas sugerem, “à sua força impressiva que nos comove e intimida por nos parecer tão reconhecível”, uma sonoridade que revelasse a universalidade que lhe reconhecemos. “Ou lhe pedimos emprestada”, acrescenta. “Queria fazer dialogar as palavras de Neruda com uma dimensão sonora mais europeia, mais jazzy, mais chanson, que mostrasse as influências do tango, do ambiente chileno, mas com uma perspectiva dos sons europeus, onde ele foi lido. Queria um trabalho poético e queria uma música que respondesse, emocionada e delicadamente, à poesia das palavras.”

“Ao contrário dos poemas políticos, que nos sujeitam a uma interpretação muito mais directa, mais racional, os outros  poemas pedem-nos que sejamos livres”, diz a intérprete, que tem passado frequentemente por Portugal. Foi uma escolha consciente. Ute Lemper queria que lêssemos Neruda e o sentíssemos como nosso, mas não queria que as circunstâncias da escrita se sobrepusessem “à magia criada pelo encontro das palavras com as ideias”.

E assim, em contraste com “a poesia reactiva, suja, quase não-poesia” de Charles Bukowski, que cantou imediatamente antes de Neruda, a poesia de Pablo Neruda é oportunidade para a cantora e actriz, figura maior de um modo de explorar as palavras como se fossem extensões do seu próprio corpo. Num gesto de regresso a um modo de viver as palavras  - “e o corpo”, acrescenta, sem pudor – próximo do cabaret alemão, “muito exposto, quase sem protecção alguma mas nunca inconsciente”, Lemper quer encontrar equivalente poético para o que chama de “uma intuição que nasce da observação mas que não se explica”.

Nas abordagens aos poemas, sejam eles de raiva, utopia, reacção e nostalgia, como em Brecht e Weill, venham eles embalados pela chanson française, rasguem preconceitos como em Bukowski ou sejam armas escondidas em asas de pombas, como em Neruda, Lemper empresta-lhes, ou constrói à sua volta, com eles, “por causa deles”, um movimento. “Às vezes não queremos intelectualizar o nosso próprio trabalho. Queremos ser intuitivos. Há uma dialética nos poemas que eu queria respeitar. A rima interna que cria com quem os lê, algo de muito íntimo, de muito pessoal, muito intuitivo.”

Para Ute Lemper, não é um simples jogo entre a palavra e a voz. “Não sou romântica. Ou melhor, sou intimamente romântica, mas não o sou na minha relação com as palavras, ou com as canções. Gosto de ser directa, sem subterfúgios, sem vaidade ou uma teatralidade desnecessária. Não gosto de ser excessiva ou extremada. Isso funciona bem com autores expressionistas como Brecht ou Bukowski, pessoas que têm, por força da cultura alemã, uma relação muito mais de reacção do que, por exemplo, os franceses, que são mais ambíguos. Mentem, criam uma aura, iludem e a poesia usa a palavra como algo pretensioso e luxuriante. Já os ingleses são muito directos.”.

E porque “a palavra é algo muito poderoso”, a escolha dos poemas quis evitar uma interpretação que não fosse “extremamente atenta ao significado na língua original e na língua em que é interpretada”.

Lemper admite que não é fluente em espanhol, mas a insistência em cantar na língua de Neruda é uma forma de se poder aproximar do que o poeta escreveu. “Mas é a minha voz, o meu corpo, o meu olhar, a minha presença, que gere essa relação com uma língua que tenho de aprender a apelidar de minha”. Assim, o espanhol de Neruda torna-se no francês, no alemão, no inglês de quem o leu. “Esperemos que no português de quem me ouve”, diz a cantora. “Sempre me interessaram as palavras e as suas múltiplas possibilidades de interpretação. Mas, com o tempo, fui-me apercebendo de como, por vezes, é mais fácil, deixar quer sejam elas a decidir o caminho de uma interpretação. Hoje, se há canções que canto sempre, faço-o com a distância evidente de quem já não o faria da mesma forma”.

Ute Lemper está consciente da imagem que passa, a de uma mulher que não se quer definir, “que não gosta de se definir, que vive entre tudo, misturando tudo”. As canções de Brecht e Weill que também cantará após as de Neruda são essa forma de voltar a tentar contar a sua história “sob o olhar de quem, por vezes, gosta de me ouvir contar a mesma história da mesma maneira”. E, confessa, para não se deixar agarrar. Como no poema de Neruda Se me esqueceres: “Se julgas que é vasto e louco/ o vento de bandeiras/ que passa pela minha vida/ e te resolves/ a deixar-me na margem/ do coração em que tenho raízes,/ pensa/ que nesse dia,/ a essa hora/ levantarei os braços/e as minhas raízes sairão/ em busca de outra terra”.

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