"A providência foi maravilhosa comigo. Sou um homem... demasiado dotado"

Lucien Donnat, decorador, em conversa com Maria João Seixas, revista Pública, Outubro de 2002

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"II faut aimer. Amei muito. II faut être amoureux. É preciso saber partilhar o que se vive" Pedro Velez

“Mas você tem a certeza de querer falar comigo? Gosta assim tanto de ruínas? Estou bom é para ser fotografado junto do que resta do Convento do Carmo... Bom, seja, às cinco então, no meu atelier."

Eu já sabia que o Lucien era um homem galante, senhor de uma coquetterie muito refinada e de um charme quase descarado. Por isso não dei grande valor aos seus simulacros de desinteresse e lá toquei à campainha, às cinco em ponto daquela tarde, pesada e húmida, como as há no fim do Verão. Veio abrir-me a porta, impecável no seu fato cor de cinza, de cravina encarnada à lapela (que "um decorador deve andar decorado, não acha?") e guiou-me até ao interior do espaço eleito. A sala estava numa quase obscuridade, pontilhada por castiçais criteriosamente dispostos com as suas velas cor de vela a arder baixinho, como baixinhos nos chegavam os acordes de uma peça de Satie, a girar na sofisticada e nórdica aparelhagem de som. Havia um piano, um cavalete com o seu retrato, muitos objectos carregados de histórias e a derramarem memórias, um sofá enorme com uma espampanante manta de pele que, em tempos, deve ter sido parecida com "ocelot", quadros e gravuras paredes fora, vitrines com mais objectos, muitas molduras, soberbos pisa-papéis em vidro, manchas de um tempo antigo nalguns pontos da cantaria e do estuque do tecto e das paredes... Tentava eu dar nome à atmosfera daquele décor, quando o Lucien disparou:

“Parece-se ou não com um filme de Visconti?!" Eu imaginava-o mais numa peça de Sacha Guitry a deliciar-me, como de resto aconteceu, com o perfume de uma época que já lá vai. Mas seja Visconti, que é do melhor! Ofereceu-me um excelente vinho tinto, apagou o cigarro que fumava ao ouvir-me tossir e olhou-me divertido, com uma curiosidade de menino, à espera do primeiro sinal. Cabia-me a mim fazer subir a cortina e desviar os projectores para o meio da cena, para que o meu trilingue conversado, se para tal lhe assistisse gosto e disposição, começasse a desenrolar algumas das suas deixas favoritas. Ora em português, ora em francês, ora em inglês. Regra aceite, soaram para nós as famosas pancadas de Molière. Lucien Donnat foi encenador, cenógrafo e actor desta conversa. Eu limitei-me a assegurar a maquinaria e as luzes.

Lucien, diga-me quem é.

Nasci em Paris, nos longínquos anos 20, sou de nacionalidade francesa, sou também meio-judeu, vivo desde pequeno em Portugal, casei com uma senhora anglo-americana de quem tive dois filhos e pratico a profissão de decorador. Quanto ao resto, que difícil é dizer quem se é! Sou... um homem honesto. Essencialmente.

Um homem... demasiado dotado. A providência foi maravilhosa comigo. Elle ma trop doué! O que deu como resultado que eu seja senhor de uma polivalência fabulosa. Nunca fui profundo em nada, tamanha era a facilidade que havia em mim para muita coisa: toco piano, canto, desenho, escrevo, faço poesia, cozinho, amo...

Só facilidades! A natureza cumulou-me de facto de muitos, demasiados!, trunfos para conseguir tudo o que queria. Agora que estou no fim da vida, dou-me bem conta de como jai fait du gâchis, de como desperdicei muito desse espantoso dote que trouxe comigo ao nascer. Passei ao lado de tanta coisa! Da minha mulher, por exemplo. E agora, its too late!

Passou ao lado da sua mulher?

Exactamente. Passei ao lado da minha vida conjugal, não me dando conta do seu valor. Mas é tarde agora para fazer outra coisa que não seja dizer que é tarde e que lastimo.

Acabei de reler o livro de memórias do reverendo Bruckberger, um dominicano muito avançado, muito polémico, que teve histórias com várias mulheres e trabalhou com Bernanos no Diálogo das Carmelitas, peça que mais tarde montei no Teatro Nacional. Neste livro lindíssimo, diz: "Não quero ser desculpabilizado. Quero, simplesmente, ser entendido e perdoado." Isto é, em resumo, como me sinto. Não tenho a menor noção de culpa em relação a tudo o que fiz. Claro que fiz muita coisa óptima e fiz muita porcaria. Há coisas de que tenho vergonha de ter feito, só que as faria de novo. Sei que as fiz no momento certo, no ambiente certo. Que mais posso dizer-lhe de mim?

Quando diz que é um homem honesto, está a eleger a honestidade como uma qualidade fundamental?

Estou a dizer que foi o que fui na vida: honesto. Com os outros e comigo. No meu trabalho, com os meus clientes. Mesmo de um ponto de vista financeiro. O dinheiro pelo dinheiro nunca me interessou; o dinheiro só me interessa pelo que me proporciona fazer. Nunca pretendi ser rico. As pessoas ricas que conheço, não as invejo, lastimo-as na maior parte dos casos.

Disse que era meio-judeu, sefardita, presumo. O que é ser-se meio-judeu?

Sou, de facto, mas só em parte, oriundo da árvore sefardita e também da árvore asquenaz, mas considero-me meio-judeu, o que torna muito difícil a convivência com as origens. O meu lado genético é tão complicado, tão mitigé, as misturas de etnias são tão dominante que criou em mim muitas turbulências.

Talvez os dons (e eu acredito no "dom" que se recebe à nascença!) venham também desta variedade de origens e as turbulências foram acentuadas por ser do signo de Gémeos.

Maio ou Junho?

Junho, logo a seguir a Santo António, que acho um santo divertido, "à Ia" Walt Disney, a falar aos peixes, casadoiro, quebra-bilhas.

Merecia que um desenho animado lhe fosse consagrado. É sensível a consagrações?

Dos outros, de alguns, poucos, sim.De mim, não. Com a terceira idade percebi que sou sensível a uma capacidade adquirida tarde, que é a do autojulgamento, a da lucidez com que me olho e a selecção que faço da memória da vida.

Podia estar horas e horas a contar-lhe não grandes histórias, mas justamente os detalhes, inesperados, que compuseram inúmeras "pequenas" histórias que pude presenciar, sobretudo no mundo do teatro, onde vivi trinta e tal anos. Comecei aos 21 anos a trabalhar na Companhia Amélia Rey Colaço-Robles Monteiro.

Como cenógrafo?

Sim, comecei como cenógrafo e depois, pouco a pouco, fui adquirindo uma posição de "eminência parda", papel que sempre adorei representar. Acho que talvez seja, bem no fundo de mim, um manipulador. Diverte-me levar as pessoas para o caminho que eu quero, levando-as a tomar uma direcção completamente ao avesso. Vou dar-lhe um exemplo: há muitos anos a Palmira Bastos mandou-me chamar para me dizer que eu devia tirar a escada de entrada para a cena. Na peça, ela fazia o papel de uma diva, de uma "superstar" (e o que eu gosto des monstres sacrés!) e, como já não era nada nova nos seus setenta e muitos, tinha medo de tropeçar. "Senhora Dona Palmira, tem toda a razão. Vou mandar tirar a escada imediatamente." Passado pouco tempo, fui ter com ela e tranquilizei-a: "Já está. Claro que a sua entrada em cena fica muito prejudicada, porque não se vê o brilho dos seus olhos. Tirando a escada, tive que mandar suprimir o projector e o espantoso brilho líquido dos seus olhos fica assim menos em realce, embora se ganhe na segurança do seu andar..." Agradeceu-me, eu saí e, cinco minutos depois, mandou-me chamar: "Lucien, estive a pensar no que me disse e acho que é melhor recolocar a escada no palco. Acho que consigo ter a firmeza suficiente para não tropeçar." Virei costas, sem antes dizer que concordava inteiramente com aquela decisão. E nada teve que ser mudado, porque eu não tinha, como é evidente, mexido na escada! Isto é que me diverte, encanta-me.

Passa-se o mesmo com a decoração. Peço que me digam a ideia que têm, para eu tentar interpretar. Nem sempre é fácil. Cheguei a não aceitar alguns trabalhos, dizendo com a maior franqueza que não nos íamos entender. O decorador funciona muitas vezes como um confessor, entra na vida do casal, compreende muito rapidamente se há cenas, se não há cenas, se há entendimento, se dormem juntos... O que eu acho ideal é que haja dois quartos, dois closets, duas casas de banho. O fuso horário do homem não tem nada a ver com o fuso horário da mulher, é sabido! Ce sont deux êtres que não foram feitos para se entender senão au lit.

Os maridos diziam-me muitas vezes: "Fale com a minha mulher sobre esta coisa que eu gostava de ter, porque ela só o ouve a si." Do lado das mulheres, o discurso era o mesmo. E eu respondia invariavelmente a cada um deles: "Mas vocês têm um trunfo a mais do que eu: a cama. Aproveitem-no para se convencerem." É verdade que a cama nem sempre é o lugar do melhor entendimento...

A velha questão do "bom gosto" atravessa a sua actividade profissional com que peso?

Não acredito no bon goút. Se há bon goût, há também mauvais goût. São ambos válidos. Devo dizer-lhe que tenho alguma admiração pelo mau gosto e o que me surpreende sempre nas pessoas de mau gosto é a sua coerência. É uma constante. O que não acontece nas pessoas de bom gosto, que são capazes de fazer mau gosto. Por isso é que sou tão brutalmente seduzido pelo mau gosto.

Conheci uma vez uma mulher absolutamente grandiosa em matéria de mau gosto. Era como que o Arco do Triunfo do mau gosto. Uma celebração. Não falhava em nada, nem na roupa, nem na cor do cabelo, nem nas jóias, nem em casa, nem na cozinha, nem na mesa. Em nada. Era deslumbrante.

No meio das suas memórias electivas lembra-se de quando veio para Portugal e de quando se apercebeu do que queria fazer na vida?

Vim para Portugal com sete anos. Com uma família constituída por pai e mãe, franceses, e os meus dois irmãos, mais velhos que eu, um irmão e uma irmã. Eu fui um acidente, fruto com certeza de um momento de entusiasmo magnífico, mas não desejado em forma de filho. O meu pai era judeu não praticante, era mesmo ateu, e a minha mãe era filha de mãe católica e foi educada catolicamente. Morreu muito cedo, tinha eu 14 anos. Acho que todas as minhas tendências para o teatro e para a arte da decoração vêm dela.

Para responder à sua pergunta, soube muito cedo o que queria fazer, embora tenha hesitado entre ser pasteleiro e ser decorador. Mas, se os meus pais tivessem tido visão, aminha carreira poderia ter sido outra, a de solista de piano. Aos quatro anos já eu tocava tudo o que ouvia. Era um fenómeno. Havia um piano vertical em casa, onde a minha mãe tocava. O pai acompanhava-a, ao banjo.

Eram amadores, simpáticos e puseram os três filhos a aprender piano, numa casa onde só havia um! Podiam ter-se lembrado de nos distribuir por outros instrumentos, mas não foi o que aconteceu. Eu é que poderia ter dado um outro Rubinstein, se eles tivessem percebido o dom que havia em mim e se tivessem apostado a sério nos meus estudos do instrumento. Aí está um dom genético, o da música, que me vem seguramente do lado judeu.

Não me posso queixar da minha infância. O meu pai era um homem de bem, menos inteligente do que a minha mãe, mas um homem de bem.

Levou muitos anos a gostar de mim, a compreender-me. Cheguei a dizer-lhe: "Compreendo tão bem que não me compreendas!" Tínhamos tão pouco em comum. Passava-se o mesmo com o meu irmão mais velho. Estudámos juntos em Paris, ele foi um dos primeiros classificados do Institui Pierre Curie, deu um excelente engenheiro químico mas... éramo-nos completamente indiferentes. Isto de se ser da mesma família e de se ter elementos genéticos comuns não quer dizer necessariamente mais do que isso. Os fluidos que nos compõem não são os mesmos, o momento em que fomos gerados é diferente, tudo é diferente. As afinidades, que é o que é mais importante, são feitas de outras misteriosas naturezas.

Fale-me dos seus estudos.

Quando acabei o brevet na École Française em Lisboa, mandaram-me para Paris, para casa dos meus avós.

É horrível mandar-se alguém com 16 anos para casa de pessoas tão mais velhas. Nunca perdoei isso ao meu pai nem aos meus avós, de quem eu de resto não gostava nada. Estar naquelas condições em Paris, com tudo o que Paris tem d'atroce pour un gamin de seize ans, foi horrível. Concorri à 1'Ecole dês Arts Décoratifs e entrei. Não fiz a École dês Beaux Arts porque chumbei a Matemática, indispensável para Arquitectura, mas fiz o curso da École du Louvre. O meu pai mandava-me muito pouco dinheiro e eu, para ter algum argent de poche, como sabia tocar piano e compunha já canções, comecei a tocar e a cantar em cabarets. Quando folheio o Paris Soir de 1937/38 e vejo anunciado o nome de Lucien Donnat, nem acredito que sou eu. Foi aí que me "baptizaram" Donnat. Sou Goldstein de nascimento, mas como me achavam muito parecido com um actor famoso da época - Robert Donnat -, a dona do cabaret que me contratou, Jacqueline Batel, já desaparecida, disse-me: "Tu ressembles à Robert Donnat, tu vas fappeler Lucien Donnat." E não pense que era uma cautela por causa de qualquer anti-semitismo, realidade que eu ignorava totalmente, mas sim por ser um nome melhor para um jovem chansonnier que fazia o seu debute. Há uns anos atrás consegui, junto das autoridades em França e em Portugal, oficializar o nome nos meus papéis e nos da minha família e agora já sou legalmente Lucien Donnat. Lucien Donnat, The First e também "O Breve", porque sem descendência para prosseguir a viagem!

Calculo que tenha sido motivo de escândalo para a família sabê-lo, com 17,18 anos, a trabalhar num cabaret. Como é que conciliava o tempo entre as aulas na École e o horário do cabaret?

Com aquela idade conciliava-se tudo. Ao princípio o escândalo foi relativo, porque eu saía da École e ia, por volta das cinco da tarde, animar as matínées dançantes do cabaret, muito na moda na época. Mas rapidamente fui contratado para tocar e cantar também à noite e, aí, sim, au grand scandale de ma famille. Acharam que eu era um menino perdido, um menino vadio. Não era. Era apenas um homenzinho com ambições.

Estava em Paris durante a ocupação?

Não. Quando a guerra começou, eu estava em Portugal a passar férias com o meu pai, que, entretanto, se tinha voltado a casar com uma tia minha, de quem eu gostava muito, irmã mais nova da minha mãe. E já não regressei a Paris. Fiquei isento da vida militar, porque tinha uma pequena deficiência cardíaca e, seguramente, devido a alguma "cunha". Colaborei também com a Cruz Vermelha e, entre outras coisas, montei, aos 20 anos, sozinho, uma revista para uma gala da organização.

Desenhei os cenários, os figurinos, escrevi a música e a letra das canções, ensaiei os artistas, toquei e cantei! Hoje até me parece mentira. Essa gala foi no Teatro da Trindade, em Lisboa e, depois, no Teatro Rivoli, no Porto. Em 1941 fiz, no SNI, que era ainda aqui em S. Pedro de Alcântara, a minha primeira exposição individual de pintura decorativa, só sobre motivos portugueses. Tenho os programas e os catálogos de tudo isso.

Olho para esses papéis e para os nomes que lá estão e já morreram todos. Resto eu. Vivo no meio de um cemitério de memórias, sou uma espécie de dependência do Alto de S. João.

A ideia da morte perturba-o?

Não. Vivo rodeado de mortos. Um dia uma vidente disse-me: "Vejo a morte sempre a seu lado." "Pois se está a meu lado, não me incomoda nada", respondi-lhe eu. E é verdade. Perdi muita gente. Muita gente que eu amava já partiu. Foi terrivelmente doloroso ver partir o meu filho, com 40 anos. E a minha mulher. Agora, je me trouve tout seul. Tenho a minha filha, doente mongolóide. Vive feliz, para meu grande consolo, rodeada de ternura e amor num convento em Lisboa. Dei-lhe já o meu dote, como antigamente se fazia nas boas famílias para as meninas que entravam no convento. É bom poder ainda estar com ela. Todas as semanas saímos, almoçamos juntos. Mas há um grande vácuo à minha volta. Parece que as boas fadas que rodearam o meu berço e me deram tudo fizeram-no com uma condição -. que os meus pagassem um alto preço por isso. E pagaram! Le Monsieur d'en Haut não deve gostar muito de mim, apesar de dizerem que Dieu punit ceux qu'il aime.

Vivi no ateísmo total e só há pouco tempo é que comecei a tentar ir ao encontro de mes sources e a tentar compreender as minhas raízes. Sou judeu-cristão, como sabe. A minha avó materna era dos Pirenéus, vous voyez ce que ca donne! Fiz um esforço para me reintegrar no ritual judeu, mas, ao fim de algum tempo, percebi que o judaísmo também não tinha muito a ver comigo. J'aime le rituel, l'ordre, le théatre, le spectacle. Nisto tudo, às vezes, consigo encontrar uma ideia de Deus. Há uma frase que tenho sempre diante dos meus olhos no atelier: Deus está no detalhe!

Voltemos a outros detalhes, os do tempo em que trabalhou com Amélia Rey Colaço.

Trabalhei 32 anos com ela. Era uma mulher divina. Havia uma relação filial maravilhosa, eu tinha a idade da filha.

Fui o filho que não teve e que gostaria de ter tido. O facto de eu ser francês também era uma vantagem. Ela era meio-francesa e falávamos só em francês, que é uma língua beaucoup plus souple que le portugais. Eu dizia muitas vezes uma quantidade de coisas fortes em francês, qu'on peut dire en français e que em português são grosseiras, ordinárias mesmo. Amei-a muito e fui, realmente, amado por ela.

A Amélia tinha uma coisa que eu adorava e adoro nas mulheres - era coquette e a coquetterie estava sempre presente nas nossas relações.

Mas, Lucien, você é um homem de uma galanteria inexcedível! Obriga-nos a ser coquettes diante de si.

Je suis un homme à femmes, no sentido em que a minha vida dependeu sempre de mulheres. Nunca dependeu de homens. Tenho, de resto, pouquíssimos amigos homens. Dois ou três, dos verdadeiros, que já estão do outro lado.

Todos os apoios que recebi vieram sempre de mulheres, mes démarrages aussi. A minha vida foi feita por mulheres.

Quando era novo, muito novo, teria aí os meus 22 anos, j'ai eu une maitresse beaucoup plus vieille que moi. Estava em Lisboa como refugiada, porque queria ir para a América. Era uma cantora russa, sumptuosa, uma maravilha de mulher. Tinha uns olhos verdes absolutamente soberbos. Chamava-se Olga Valéry. Numa festa da Cruz Vermelha foi convidada para cantar e, como precisava de um acompanhante ao piano, apareci eu. Apaixonou-se por mim e acabámos juntos seis anos. Apesar de muito mais novo, comportei-me muito bem no papel do homem oficial, aquele que a acompanhava para todo o lado. Mas foi uma escola extraordinária, porque, na minha ignorância das coisas, eu aprendi a perguntar, sem vergonha, com simplicidade: Comment veux-tu que ca se fasse? Foi ela que fez de mim, definitivamente, un homme à femmes, porque me deu a oportunidade e a curiosidade de descobrir como é que é uma mulher. Os homens têm ideias muito vagas sobre as mulheres.

Viviam juntos?

Não. Nunca, nas minhas "histórias", quis viver com, quis sequer ter a chave de casa. Dizia: La maison n'est pas à moi! E queria ser anunciado quando viesse em visita. É o melhor sistema para um bom entendimento. Os casais deviam viver assim, cada um em sua casa e depois poderem dizer-se: "Posso ir jantar contigo esta noite?" Avec tout ce que ca veut dire. Ou então: "Hoje mando-te um ramo de violetas, mas estou com dores de cabeça, não vou aparecer..." Le quotidien abîme tout!

Perderam-se de vista?

Ela acabou por regressar a França, eu casei entretanto e, quarenta e tal anos depois, recebo um dia um telefonema.Era a minha russa, a minha Olga, que estava em Lisboa a fazer um filme. Mandei-lhe um enorme ramo de flores ao Tivoli e disse-lhe para me vir ver, ao atelier, quando tivesse um intervalo nas filmagens. Eu tinha na altura um ajudante extraordinário, o António, que me faz muita falta, agora que também já partiu, a quem tinha contado a minha história com a Olga. Quando ela tocou à campainha, pedi-lhe que fosse abrir.

Quando o António veio buscar-me, não resistiu e exclamou: "Irra, que é velha!" Imagine-se, com mais 15 anos do que eu e eu, na altura, já tinha sessentas e tais!! Mas apareceu-me deslumbrante, com um enorme véu a tapar-lhe a cara e a esconder os ultrajes dos anos. Sumptuosa! Tu as beaucoup changé, disse-me, fixando os meus cabelos brancos. Só pude responder: Toi, tu es pareille!

Viveu sempre em Portugal?

Sempre. Casei com a minha mulher, que eu conheci em Portugal, ainda adolescente. Ela era americana, filha de mãe inglesa e de pai americano. Foi educada num convento em Versailles e continuou depois os seus estudos numa universidade americana, na Carolina do Sul. Foi a única mulher por quem me apaixonei e para casar com ela converti-me ao catolicismo.

Em Portugal nasceram os nossos dois filhos. Só saí de Portugal depois do 25 de Abril. Os meus clientes, aqueles que não foram para Caxias, saíram quase todos ou para a Suíça ou para o Brasil e os que passaram a mandar não estavam propriamente interessados em decorações. Mas antes dessa data preferi sempre ficar em Portugal, onde era o ditador da decoração, o Salazar desse campo. Tive convites para ir trabalhar para França, para Nova Iorque também, mas achei sempre que era melhor ficar no sítio onde quem "ditava" os acontecimentos era eu.

E foi para onde? Foi atrás dos seus clientes?

Não. Partia conquista de clientes novos. Fui para o Brasil, por estar lá o meu filho, que também era decorador. Tive que começar do zero, como qualquer emigrante. Dizia a um dado momento que era como a Coco Chanel, a conseguir levantar-me do chão. Três vezes fui ao chão e três vezes dele me levantei.

Consegui vencer ao ponto de fazer a decoração da casa do governador de São Paulo. Depois fui à conquista de Buenos Aires e fazia uma espécie de link com Nova Iorque, por via dos contactos argentinos e brasileiros. Trabalhei muito.

Ganhei muito dinheiro, que mandava para a minha mulher e para a minha filha. E para manter o atelier em Lisboa, que nunca fechou, com o António a cuidar dele. Doze anos depois, em 1990, regressei definitivamente a Lisboa, onde tudo o que eu conhecia tinha mudado e recomecei do zero outra vez. Precisei de voltar para cá, para deixar o Gil, o meu filho, sem a minha sombra. Ele tinha muito mais talento do que eu, mas eu tinha mais charme, et je savais m'en servir, o que me abria as portas onde batia. O Gil era também muito mais audacioso do que eu, tinha um lado aventureiro que eu não tenho, dizialhe por graça e com a maior ternura: C'est ton côté gangster!

O 25 de Abril meteu-lhe medo?

Abalou-me muito. Não porque tenha sido particularmente molestado.Passei por aquelas chatices que muitos viveram, tive neste atelier uma cena linda com uma denúncia de uns comunistas que diziam que eu explorava o trabalho dos meus desenhadores. Enfim! Mas o que me abalou foi o facto de ter ficado sem hipótese de trabalhar.

Quando aos cinquenta e tal anos nos tiram o tapete debaixo dos pés, tapete feito com muito trabalho honesto ao longo de toda uma vida, mete muito medo. Tive muito medo por me ver sem nada e por poder não conseguir recomeçar. Consegui, felizmente.Nunca mais terei medo de nada.

Tem novos projectos em mãos?

Alguns, entre eles uma pousada nova para os lados de Vila Franca de Xira, que nunca mais arranca. O mais curioso surgiu-me noutro dia, quando o bisneto de um antigo cliente meu tocou à porta e me contactou para arranjar a sua novacasa. Não é delicioso? Bem tentei convencê-lo a procurar uma pessoa mais nova. Qual quê!!

Qual o segredo, Lucien, para o brilho nos seus olhos quando fala do que viveu e fez?

II faut aimer. Amei muito. II faut être amoureux. É preciso saber partilhar o que se vive. Ir a um teatro sozinho? Nem pensar! É indispensável poder comentar para o lado a nossa emoção perante um texto, um actor. Visitar uma cidade sem companhia? Que horror não termos a quem dizer: Oh, regarde! Se há segredo, talvez seja esse,o maior de todos os dons, o de ter tido sempre muito boa companhia a meu lado. Agora que o vácuo se instalou, que o tumulto que sempre me rodeou se dissipou, que o silêncio dos trapistas caiu sobre mim, vivo com a minha música, com os meus livros, com os 25 maravilhosos álbuns que a minha mulher foi fazendo, ao longo da sua vida, sobre a nossa vida, com fotografias, recortes de jornal, notícias diversas e que são peças organizadas com uma inteligência muito rara. Estes álbuns têm-me feito a melhor companhia nos últimos tempos e têm-me ajudado a reviver tudo de novo. Tive uma vida brilhante, maravilhosa e, mais do que tudo, insólita.

O brilho nos olhos é, seguramente, o melhor testemunho disso. Dê-me uma palavra de eleição.

Essayer d'arriver à Ia perfection. Tentar chegar à perfeição, porque God is in the detail.

 

 

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