A paisagem é muito mais que um cenário

São 60 pinturas do Museu do Prado e estão em Lisboa até ao fim de Março. Mostram que os artistas do Norte e as suas paisagens habitadas tinham muito a dizer aos do Sul. A partir de hoje no Museu de Arte Antiga.

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Atalanta e Meleagro caçando o javali de Cálidon, de Peter Paul Rubens Cortesia: Museu do Prado
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Uma mulher entre duas paisagens italianizantes do jovem pintor holandês Herman van Swanevelt Nuno Ferreira Santos
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Mercado e lavadouro na Flandres, de Jan Brueghel, o Velho, e Joos de Momper, o Jovem Cortesia: Museu do Prado
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Cerco de Aire-sur-la-Lys, de Peeter Snayers Cortesia: Museu do Prado
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Paisagem com ciganos, de David Teniers, o Jovem Nuno Ferreira Santos
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Bosque, de Simon de Vlieger Cortesia: Museu do Prado

Paisagens rurais cobertas de neve, bosques cerrados que convidam a entrar, bodas campestres com danças de roda e outras festas populares, cenas portuárias com embarcações mercantes e jardins reais feitos para impressionar. Na paisagem do Norte cabe quase tudo. É pelo menos o que sugere Rubens, Brueghel, Lorrain: A Paisagem Nórdica do Museu do Prado, a exposição que é hoje inaugurada em Lisboa e que resulta de um protocolo celebrado em Setembro entre a pinacoteca espanhola, uma das melhores do mundo, e o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA).

Para o MNAA, esta colaboração com o Prado – de que esta é a primeira etapa e que incluirá o empréstimo a Madrid do tríptico As Tentações de Santo Antão, de Hieronymus Bosch, em 2016 – antecede uma outra estreia, a da associação a uma produtora externa, neste caso a Everything Is New, para a apresentação de uma exposição.

Rubens, Brueghel, Lorrain: A Paisagem Nórdica do Museu do Prado é uma exposição que passou já por Saragoça, Sevilha e Palma de Maiorca e que inclui 60 pinturas do museu madrileno, quase todas saídas do seu percurso permanente (algo que só é possível porque o museu tem as galerias de pintura flamenga em remodelação). Em Lisboa vai ser apresentada na sua versão mais completa, garante Teresa Posada Kubissa, comissária e conservadora do departamento de pintura flamenga e das Escolas do Norte do Prado. “Vamos mostrar o que de melhor temos para oferecer da paisagem do Norte das nossas colecções”, diz enquanto percorre as galerias onde estão instalados os nove núcleos expositivos, organizados por temas e sem qualquer preocupação cronológica.

“Paisagem do Norte” é uma designação que aqui deve ser entendida no seu contexto italiano, explica a historiadora espanhola. Como? “Tendo noção de que os italianos chamavam ‘nórdicos’ a todos os estados que ficassem para lá dos Alpes, o que incluía a Flandres e os Países Baixos.” É precisamente nesta área geográfica, acrescenta, que na segunda metade do século XVI os artistas começam a mudar de interesses, trocando os temas heróicos e mitológicos por uma pintura mais próxima do dia-a-dia. Esta tendência acentua-se no início do século XVII, com a paisagem a fazer parte desses novos temas e acabando por se transformar num género independente, com múltiplas subdivisões.

Paisagens imaginadas
Desde o século XV que os pintores do Norte se interessavam pela representação rigorosa da natureza, o que era, aliás, um factor de inovação em relação à pintura do Sul, embora alguns italianos tenham seguido as suas lições, como Giovanni Bellini e Giorgione, escreve Posada Kubissa no catálogo. As primeiras paisagens estão relacionadas com as estações do ano e com os meses nos livros de horas.

“As paisagens nórdicas foram sempre, desde os flamengos do século XV até aos holandeses do século XVII, tão idealizadas como idealizadas eram as figuras dos temas históricos pintados pelos italianos”, diz a comissária, explicando que os artistas trabalhavam nos seus ateliers, rodeados de aprendizes, e que os esquissos que saíam dos seus passeios pelos campos, mercados e festas populares eram aí usados para construir paisagens imaginadas, ao lado de outras fontes iconográficas como as gravuras.

“No Sul, a paisagem serve apenas de fundo à cena que se representa, que por regra é histórica ou de inspiração mitológica ou religiosa. No Norte é de ambiente que se trata. A paisagem torna-se tão importante como as figuras que nela aparecem, tão importante como o tema – é uma personagem em si mesma. E é esta atitude que abre as portas à paisagem moderna”, diz ao PÚBLICO. É preciso ver, sublinha, que esta nova abordagem que faz da paisagem um género autónomo cria uma pequena revolução, já que ela era absolutamente secundária na tratadística clássica. “Miguel Ângelo dizia com desprezo que os nórdicos só sabiam pintar paisagens”, lembra.

E faziam-no, garante a comissária, apesar de um paradoxo – os Países Baixos, que levaram particularmente longe esta “revolução na paisagem”, eram os principais responsáveis pela difusão da cultura do Renascimento italiano no Norte da Europa, que tinha na pintura histórica, carregada de figuras, o género por excelência. Mas a paisagem que se pode ver até 30 de Março nas galerias do MNAA, alerta a comissária, está longe de rejeitar a presença humana: “Aqui raramente estamos perante paisagens desertas. São quase sempre habitadas, mesmo que seja difícil encontrar nela as figuras, que são muitas vezes caçadores, cavaleiros, camponeses ou ninfas. A paisagem é usada para veicular ideias, conceitos, para ajudar a compreender e a escrever a História.”

As cenas da vida campestre que marcam um dos núcleos são o exemplo de como a paisagem podia ser altamente politizada no século XVII. “Por vezes uma cena como a da Boda Campestre [Jan Brueghel, o Velho, c. 1621-1623] é organizada para representar as várias classes responsáveis pela construção de uma nova ordem social, proposta pela Contra-Reforma. O casamento dos camponeses tem uma dança de roda popular, mas também tem um cortejo que sai da igreja como se fosse um desfile nupcial de nobres.”

Com esta abordagem que privilegia a criação de um ambiente mais do que de um cenário e a elevação do dia-a-dia a um tema que merece tratamento na pintura – a secagem da roupa, um piquenique no campo ou os trabalhos numa ceara – os nórdicos influenciam, dois séculos antes e de maneira decisiva, os modernos do século XIX. E tal como na pintura histórica, a paisagem que agora vemos no MNAA pode esconder significados num rio e numa ponte, num mar de tempestade e no cigano que lê a sina à beira de um caminho. Pode falar de transitoriedade, de harmonia e de poder, e nela um papagaio pode ser uma evocação mariana ou simplesmente uma ave exótica.

“Toda a cultura do século XVII está carregada de símbolos e esta pintura não foge a isso. Tem múltiplas camadas de leitura, mas é preciso ter cuidado – devemos ter com ela a mesma relação que temos com um bom poema e evitar exageros na interpretação. Às vezes uma árvore é só uma árvore, por mais incrível que seja, como as de [Peter Paul] Rubens e de [Simon de] Vlieger.”

Bosques inquietos
Mestres como Peter Paul Rubens (1577-1640) e Jan Brueghel, o Velho (1568-1625), são o chamariz desta exposição em que a floresta e as paisagens geladas são temas recorrentes. Destes dois núcleos expositivos fazem parte a magnífica árvore de Simon de Vlieger (Bosque, c. 1640-1645) e o “mapa com neve” de Peeter Snayers (Cerco de Aire-sur-la-Lys, 1653), pintura que parece ter sido feita a partir de uma carta militar e que mostra um grande complexo de fortificações com um exército improvisado em marcha.

Os bosques de De Vlieger "têm árvores dramáticas em que os galhos parecem garras" e neles há figuras difíceis de encontrar. Por regra, mesmo quando representam cenas mitológicas variadas ou as Metamorfoses de Ovídeo, os pintores do Norte fazem figuras pequenas. "Não são os bosques quietos da Flandres, têm um ambiente romântico.”

As árvores estão vivas, tal como na grande obra de Peter Paul Rubens (1577-1640) Atalanta e Meleagro caçando o javali de Cálidon (c. 1635-1636). Nesta pintura que no museu de Arte Antiga se pode ver entre duas outras em que este mestre do barroco flamengo colabora com dois dos seus contemporâneos – Jan Brueghel, o Velho, de quem era muito amigo e Jan Wildens – as figuras fundem-se com as raízes, há garças escondidas nas copas e a ideia de uma floresta que não acaba, marcada por pequenos pontos de luz.

Para Teresa Posada Kubissa, o Rubens que se vê nesta caçada e noutras paisagens que só se tornaram conhecidas depois da sua morte é o mesmo da grande pintura histórica. Mas no primeiro dos géneros, a sua mestria não pôde influenciar os artistas do seu tempo porque as obras que lhe dedicou eram da esfera privada – pintava-as só para si e para os amigos. “É a mesma energia arrebatadora, como se toda a natureza participasse da caçada”, diz a comissária, apontando para a folhagem de contornos indefinidos. “Aqui vemos a mestria das grandes pinceladas que só é possível a um artista que pinta com o corpo todo.”

A exposição fecha com uma sala dedicada à pintura italianizante, com obras de jovens artistas holandeses, com destaque para Jan Both e Herman van Swanevelt, que viajam para o Sul atrás de outra coisa que não a antiguidade greco-latina e o Renascimento. “Vão à procura da luz quente e contrastada que não têm em casa e encontram-na.”
 

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