A noite de Argo e Michelle Obama

O espectáculo dos Óscares visto pelo crítico de cinema Luís Miguel Oliveira.

E a indústria do cinema americano lá se celebrou, no espectáculo enfadonho do costume, e, como também é habitual, de forma não isenta de umas quantas peculiaridades e crueldades. Que no fim de contas são as coisas de mais interesse para registar. Importa pouco discutir a actuação de Seth McFarlane, pela primeira vez na condução das operações.

Digamos que não fez esquecer Billy Crystal, ainda o americano vivo que mais naturalmente parece talhado para a função, e que fora um número – uma canção sobre “maminhas” – a ameaçar tornar-se um momento Irmãos Catita (sem de facto chegar a sê-lo, que seria a maneira de ter graça), McFarlane foi uma presença insonsa, tão descolorida como o tuxedo que envergava. Assacar-lhe toda a responsabilidade pelo enfado da cerimónia seria, no entanto, demasiado duro.

Hollywood voltou – com ênfase – a mostrar que é a principal inimiga do seu passado e da sua história, parecendo rendida ao menor denominador comum da memória. Provavelmente à boleia de Os Miseráveis, esse enésimo “regresso” do musical, resolveu-se celebrar a música nos filmes. Muito bem, bela ideia, a história do cinema musical americano é maravilhosa. Mas... bom, parece que essa história só começou há dez anos, porque o mote foi uma festa pelo décimo aniversário de Chicago. Bizarríssimo pretexto, que só se explica, de facto, se aceitarmos que há um chip novo montado nos circuitos da memória de Hollywood: meu Deus, o Chicago faz dez anos, que importam Berkeley, Astaire, Kelly ao pé da crucial importância de uma efemeridade desta magnitude? Previsivelmente, não saiu dali nada de airoso ou de interessante.

Um pouco mais airoso foi o outro sítio onde Hollywood descobriu “música nos filmes”: os 50 anos de 007, que legaram, isto é inegável, um bom punhado de preciosidades pop. Convocou-se Shirley Bassey, e rimou-se com o Óscar entregue pela canção de Adele em Skyfall. Ainda assim, para celebração da música nos filmes, foi, tudo somado, curto e mau.

A opção pela música talvez tenha resultado da dificuldade em encontrar um tema dominante entre os principais filmes nomeados. Ao contrário do ano passado, em que dois dos principais favoritos (O Artista e Hugo) passeavam por terrenos contíguos, os filmes deste ano, na maior parte, seguiam cada um pelo seu caminho. Vale dizer que, julgando pelos nomeados para melhor filme, constituíam o leque mais homogéneo desde há muito. Há sempre um “monstro” – o deste ano era Os Miseráveis – mas os outros, mesmo não sendo propriamente “belas”, eram de um modo geral filmes bastante apresentáveis. Isso mesmo acabou por ser reflectido na distribuição dos prémios, onde houve um pouco de tudo para quase todos, e nenhum filme concentrou uma quantidade descomunal de troféus.

A Vida de Pi, de Ang Lee, levou quatro e foi o mais premiado, mas quem ficou com o título de Melhor Filme foi Argo, de Ben Affleck, que só levou três prémios no total. No rácio nomeações/prémios, o “derrotado” da noite foi Lincoln de Spielberg, que se habilitava a 12 estatuetas e só levou duas – para “Design de produção” (o novo nome da “Direcção Artística”) e, inevitavelmente, convenhamos mesmo merecidamente, o Óscar de Melhor Actor, Daniel Day-Lewis.

O filme de Affleck foi o melhor filme, mas Affleck não foi o melhor realizador, que foi Ang Lee. Affleck nem estava nomeado, singularidade derivada do novo modelo de nomeações, que prevê dez candidatos a melhor filme e só cinco a melhor realizador. Nalguns casos fará sentido, noutros não, e se o caso de Affleck soa a injustiça, há alguma lógica no facto de filmes em que a personalidade dos realizadores é absolutamente decisiva (o de Bigelow e mais ainda o de Tarantino) poderem ser “melhores filmes” sem que o seu “director” o seja também? Tarantino, já agora, levou um dos prémios mais justos da noite: Melhor Argumento Original entregue àquele que, sem concorrência, é o melhor escritor da Hollywood contemporânea.

Entre os prémios de interpretação, Day-Lewis (que a trivia dos Óscares regista como o primeiro actor a merecer por três vezes esta distinção) teve a companhia de Jennifer Lawrence (Guia para um Final Feliz), Melhor Actriz, da sofredora Anne Hathaway (melhor secundária por Os Miseráveis), e do melífluo Christoph Waltz (Django Libertado), que sempre que filma com Tarantino leva estatueta para casa (já tinha sido assim com Inglorious Basterds).

Nada contra Jennifer Lawrence, que é impecável no seu filme e a quem se augura carreira frutuosa, mas o seu prémio foi a principal injustiça da noite. Não por ela, mas porque isso significou ignorar Emmanuelle Riva (por Amour, de Haneke, o mais que previsível vencedor do Óscar de melhor filme estrangeiro). Não se desinquieta uma senhora de 85 anos, que ainda por cima pertence a tudo menos àquele mundo, para depois a “esnobar”. Cavalheirismo à parte, a ignorância de Riva é um bom sinal do que está mal nos Óscares da actualidade: perdeu-se a capacidade de reconhecer o que é verdadeiramente especial, o que é verdadeiramente irrepetível. Por todas as razões, o papel de Riva em Amour é especial e é irrepetível. É difícil dizer o mesmo do papel de Lawrence, que tem uma carreira pela frente. Mas, enfim, dirão os cínicos, é mais fácil ganhar dinheiro com uma carinha laroca all-american do que com uma actriz francesa octogenária.

Os cínicos também terão uma palavra para outro momento bizarro da noite, a visita à Casa Branca para a Primeira Dama, Michelle Obama, anunciar o prémio de melhor filme. Há uma ligação política e histórica entre Argo e a Casa Branca, e o filme é produzido por alguns activos partidários de Barack Obama, como George Clooney. Mas isto quer dizer o quê? Um “patrocínio” presidencial da indústria americana de cinema – eis “o cinema da era Obama”? Não é preciso ser-se um taradinho da Fox News para se achar que a ideia é bizarra. Subliminarmente, a mensagem não é muito diferente desta: “produtores, realizadores, se querem ser premiados comecem por fazer filmes que agradem ao casal Obama”. Era escusado, ou assim nos pareceu.
 
 
 

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