A imprensa já pede a Palma de Ouro para a intimidade sexual de La Vie d’Adèle

Há algo de nunca antes visto ou experimentado num ecrã de cinema, sim. La Vie d’Adèle, o espectador está na cama e na intimidade de duas mulheres. A imprensa pede a Palma de Ouro.

Começou a perguntar-se em Cannes, depois das três horas de duração de La Vie d’Adèle Chapitres 1 et 2, se um novo patamar de intimidade sexual num ecrã tinha sido estabelecido pelo filme do franco-tunisino Abdellatif Kechiche, acabado à última hora, apresentado ainda sem genérico na competição do festival.

Há algo de nunca antes visto ou experimentado num ecrã de cinema, sim. Quem conheça os filmes de Kechiche, o espectador que honrar as marcas deixados pelo olhar sobre as actrizes e personagens femininas em A Esquiva (César do melhor filme em 2002), O Segredo de um Cuscuz (2007, Grande Prémio Especial do Júri em Veneza e César para melhor realizador) ou Vénus Negra (2010), pode, só por isso, avistar um horizonte. Mas não poderá, sem ter visto La Vie d’Adèle Chapitres 1 et 2, sentir. Que a temperatura, a amplitude e a dependência de uma relação amorosa podem ter expressão desta forma, um grande e intenso íntimo trazido ao espectador — que está na cama delas, Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux.

Esta é a primeira adaptação da carreira de Kechiche, que parte de uma novela gráfica, Le Bleu est une couleur chaude, de Julie Maroh, para contar a educação sentimental e sexual de uma rapariga, no filme chamada Adèle (o realizador quis que a personagem tivesse o nome da sua actriz), a partir do coup de foudre por uma Emma de cabelos azuis (Léa Seydoux). Kechiche diz ter-se afastado da militância (e mantém: quem quiser que explore o sinal dos tempos e as mudanças culturais, isso não o incomoda mas isso não lhe interessa) e da tragédia da história original. Interessou-se pelos movimentos de uma relação, pela energia do encontro, pelas dificuldades e pela ruptura. E pelas imagens de corpos nus na BD de Julie Maroh.

Começou por procurar reencontrar um fluxo decisivo do seu cinema e das suas personagens, que para alguns foi quebrado com (o mal amado) Vénus Negra. E é assim que no início de La Vie d’Adèle há uma turma a trabalhar La Vie de Marianne, romance incompleto de Marivaux, autor de quem os alunos de uma escola do subúrbio encenavam uma peça em A Esquiva. Como se fosse um regresso, querendo sentir que é possível reencontrar o que nunca ficou completo, como as personagens dos filmes anteriores (o que lhes aconteceu, décadas depois?). E por isso pode ficar no ar em La Vie d’Adèle Chapitres 1 et 2, mesmo que apenas como energia, a possibilidade de continuar novos capítulos da vida de Adèle e Emma. As actrizes estariam dispostas — como elas dizem, de qualquer forma o que Kechiche filmou ao longo de quatro meses foi tanto, ficou tanta coisa de fora, que haveria logo ali vários filmes em potência.

Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux são o foco de atenção em Cannes. A imprensa já pede um prémio de interpretação para as duas (ou para Adèle, que se ri com as covinhas que Sandrine Bonnaire tinha quando fez À Nos Amours, de Maurice Pialat). E a imprensa arrisca e atreve-se mesmo a exigir a Palma de Ouro para o filme de Kechiche — cúmulo que aliás os regulamentos do festival não permitiriam.

A curiosidade sobre o que fizeram e como fizeram, a longa duração e a verdade do sexo, é coisa timidamente rodeada pela imprensa e Adèle e Léa deixaram-se ficar protegidas pelas gargalhadas de timidez. Sobre o “método Kechiche”, contam que filmar é como entrar para uma família, e que, estando sempre a câmara à distância, com as grandes focais que permitem chegar aos olhos, à boca, ao grande calor, elas nunca sabiam se estavam em cena. Kechiche abre mais o jogo: tratou-se também, para além da intensidade, de divertimento, de “jogar”.

É o melhor filme de Abdellatif? Se calhar o realizador nem consegue aqui a monumentalidade coral de outras obras, porque há personagens — os pais das duas amantes, através dos quais percebemos a diferença social e cultural que pesará na ruptura entre elas — que surgem como episódicas ou de quem o filme desiste como se não acreditasse na sua presença porque as achasse anedóticas (e assim ficam, episódicas e por pouco escapando ao anedótico). Depois, é o filme de Kechiche em que menos se sente a participação dos corpos na circulação de algo que os ultrapassa, uma angústia, como em O Segredo de um Cuscuz, ou uma mortificação, como em Vénus Negra.

É que neste filme tudo se perde em ressaca quando não se está com a intimidade e o sexo entre Adèle e Ema. Kechiche confirmou, por exemplo, a dificuldade com as cenas de refeições, quando em outros filmes seus eram esses precisamente os momentos de expressão sensual de um tecido social e afectivo.

Mas o que aqui está, e nem tínhamos ainda falado de como o filme reinventa a passagem do tempo na relação entre as duas personagens, já faz dele, facilmente, o melhor filme até agora na competição. Sim, e se for preciso escolher entre as covinhas no rosto de Adèle Exarchopoulos e o filme, que venha a Palma.

No dia de La Vie d’Adèle Chapitres 1 et 2, nada é fácil para qualquer outro filme. Por isso Nebraska, de Alexander Payne (competição), um road movie a preto e branco por uma ruralidade americana deprimida, fica no seu devido lugar: o da simpatia.

Como em About Schmidt (2002), com Jack Nicholson, temos de levar com um maldisposto, personagem que é interpretada por um dos tesouros do cinema americano dos anos 70, o actor Bruce Dern. Acredita na publicidade ambígua, acha que ganhou um milhão de dólares mas para reclamar o prémio é preciso ir do Montana ao Nebraska. Um filho faz-lhe a vontade.

Oportunidade para se dar um melancólico encontro de familiares, que são aquelas personagens de amargura e excentricidade silenciosa dos filmes de Payne, e possibilidade de ser feita a canonização do pai, que até aí estava em perda. É um filme em busca de conforto, em busca de uma figura paterna. Se calhar é por isso que Alexander Payne andou a ver filmes a preto e branco dos anos 60 e 70. E é por isso que Nebraska tanto parece um eco de The Last Picture Show, de Peter Bogdanovich — néon a piscar na estrada vazia e tudo.


 
 

 

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