A igreja que foi fábrica de sapatos é uma casa de heróis mal amada

A expressão popular que lhe está associada ainda se usa, mas o Panteão Nacional da Igreja de Santa Engrácia é sobretudo visitado por estrangeiros. Que casa é esta, afinal? O que dizem as dez figuras ali sepultadas sobre Portugal e os portugueses? Dois historiadores respondem.

O interior do Panteão Nacional é decorado com mármore de várias cores
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O interior do Panteão Nacional é decorado com mármore de várias cores Daniel Rocha
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A grande cúpula que domina o rio Pedro Elias
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O túmulo de Amália Rodrigues é o único que tem sempre flores Daniel Rocha
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Para muitos historiadores de arte é um edifício único do barroco português Daniel Rocha
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Aspecto geral do panteão Daniel Rocha
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Há dois espaços vazios na sala onde estão os túmulos de Humberto Delgado e Aquilino Ribeiro Daniel Rocha
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Durante o período em que foi fábrica de calçado militar Cortesia: Fundação Calouste Gulbenkian/Biblioteca de Arte/in "Obras de Santa Engrácia"
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Ainda como fábrica de sapatos Cortesia: Arquivo Fotográfico/in "Obras de Santa Engrácia"
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Santa Engrácia ainda por terminar numa vista da zona oriental de Lisboa Cortesia: Instituto da Habitação e Reabilitação urbana/in "Obras de Santa Engrácia"
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Obras em curso (c. de 1966) Cortesia: Instituto da Habitação e Reabilitação urbana/in "Obras de Santa Engrácia"
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Feira da Ladra com Santa Engrácia Cortesia: Instituto da Habitação e Reabilitação urbana/in "Obras de Santa Engrácia"

Ao entrar chega-nos, baixinho, a voz de Amália. Canta Uma casa portuguesa, bem a propósito. No Panteão Nacional, diz um dos funcionários da guardaria, ouve-se sempre a fadista e música barroca. “Ninguém estranha”, garante, “porque há turistas que vêm para ver o monumento e outros que vêm só à procura da Amália, muitos até para lhe deixarem flores”.

Na sala onde está o seu túmulo de mármore, a mesma dos escritores Almeida Garrett, Guerra Junqueiro e João de Deus, há quem se encarregue de nunca deixar secar as flores que lhe oferecem. Das dez figuras que têm os restos mortais na Igreja de Santa Engrácia, em Lisboa, só Amália e Sidónio Pais, o Presidente da República assassinado em 1918, as recebem.

A escala da igreja hoje dessacralizada é monumental e sente-se sobretudo no interior solene, decorado com mármores de várias cores. Não há símbolos religiosos no altar e o espaço mais nobre parece uma enorme praça feita para passear. É difícil imaginar o edifício como depósito de armamento e fábrica de sapatos do Exército (século XIX e começo do XX). A sua história é atribulada e inclui uma igreja primitiva destruída por uma tempestade, uma lenda à volta de um amor proibido e até uma maldição. Acredite-se ou não nestas duas últimas, certo é que este templo barroco que muitos historiadores de arte consideram único esperou séculos para ser concluído e esteve praticamente os últimos 100 anos – foi destinado a Panteão Nacional em 1916 – entre os holofotes do Estado Novo, que fizeram dele um instrumento de propaganda, e um certo esquecimento, aparentemente incapaz de medir forças com o Mosteiro dos Jerónimos, monumento que muitos portugueses vêem ainda como o verdadeiro panteão.

“Como os restos mortais de Camões, de Vasco da Gama e de Alexandre Herculano se mantiveram em Belém, os Jerónimos continuaram a funcionar como um panteão de facto”, explica ao PÚBLICO Fernando Catroga, catedrático da Universidade de Coimbra que tem vindo a especializar-se, entre outros assuntos, no laicismo e no republicanismo. “Como o mais alto altar cívico da pátria.”

Se o panteão de Santa Engrácia está hoje um pouco mais presente no imaginário nacional, deve-o, diz a sua directora, Isabel Melo, a Amália Rodrigues, a fadista que morreu em 1999 e que para lá foi trasladada em 2001, numa cerimónia a que assistiram milhares de pessoas. Passará a devê-lo também e em breve à escritora Sophia de Mello Breyner Andresen, que será a próxima e ainda este ano a receber esta honra de Estado, depois de os vários grupos parlamentares terem chegado a acordo no final do ano passado, soube-se na sexta-feira. Sophia é muito acarinhada pela sua obra poética, mas também pela ligação ao combate ao Estado Novo e pelos seus contos eternos para crianças. Eusébio da Silva Ferreira deverá ser o seguinte.

A decisão de quem deve figurar no Panteão Nacional “é sempre política”, diz Maria João Neto, professora de História de Arte da Faculdade de Letras de Lisboa, que tem dedicado parte da sua investigação à evolução do monumento e às suas relações com os vários regimes, primeiro com a monarquia liberal, depois com a República, o Estado Novo e a democracia. Qualquer escolha feita até aqui deu origem a polémica, lembra, “porque estas figuras de Estado são pessoas e, como tal, não são perfeitas”. Guerra Junqueiro, exemplifica, foi um arauto do republicanismo, mas é por muitos visto como um instigador do regicídio de 1908.

No caso de Amália, situação que agora se repetiu com Eusébio, à decisão política juntou-se “uma forte pressão popular”, acrescenta a directora do monumento, garantindo que boa parte do seu trabalho passa por demonstrar que “o panteão não é um lugar de celebração da morte, mas de celebração da vida”, e que está longe de ter a atenção que merece, apesar do número crescente de visitantes. Em 2013 teve 72 mil, cerca de 70% dos quais estrangeiros. O público, garante, tem aumentado de forma constante desde a chegada de Amália.

“É preciso que haja uma relação emocional com quem aqui está para que haja um sentimento de pertença. Não se pode amar ou acarinhar um panteão sem isso. Creio que essa relação só se começou a construir verdadeiramente em 2001.”

Para Isabel Melo, o distanciamento que muitos portugueses têm do panteão, até os que vivem em Lisboa, é o mesmo que têm de outros símbolos nacionais: “Somos pouco orgulhosos da nossa história, que é rica, e vemos a morte como uma barreira que se constrói. É cultural. E nós não temos sabido enaltecer devidamente o simbolismo deste edifício. Quando digo ‘nós’, refiro-me aos cidadãos, mas também ao poder político.”

O “distanciamento” de que fala a directora que ocupa o cargo há cinco anos pode explicar-se, garante Maria João Neto, pela própria história do edifício, sobretudo a mais recente, e pelo facto de o país ter muitos panteões: “Diz-nos o senso comum que onde há o túmulo de um rei há um panteão, e isso pesa.”

Uma maldição lendária
A igreja primitiva, da qual nada resta hoje, foi erguida em 1568 por vontade da infanta D. Maria (1521-1577), filha de D. Manuel I, e praticamente destruída durante uma tempestade, em 1681. No ano seguinte lançou-se a primeira pedra do actual edifício – para muitos uma jóia do barroco português de influência italiana, com projecto do mestre João Antunes –, que só viria a ser concluído em 1966, por ordem expressa do então Presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar. Tinham passado 284 anos.

A expressão popular “obras de Santa Engrácia”, usada por referência a algo que tarda em acabar, é apenas um dos dados da tradição associados à igreja. Outro é Simão Solis, o cristão-novo que em 1630 foi acusado de profanar o templo, roubando as hóstias guardadas no relicário da capela-mor. Diz a lenda que Solis, visto a rondar a igreja na noite do assalto, com as patas do cavalo em que seguia embrulhadas em panos para que não fizessem barulho, jurou até à morte que era inocente. Antes de ser queimado vivo no Campo de Santa Clara, lançou uma maldição à igreja ainda em construção, dizendo: “É tão certo morrer inocente como as obras nunca mais acabarem!”

O verdadeiro assaltante foi identificado mais tarde, vindo a descobrir-se por que razão Solis nunca quis dizer o que fazia junto a Santa Engrácia naquela noite – esperava que Violante, filha de um fidalgo e noviça no Convento de Santa Clara, viesse ao seu encontro para que fugissem juntos.

Entre a destruição da igreja primitiva e a inauguração em missa solene com o cardeal Cerejeira – uma das pouquíssimas missas celebradas em Santa Engrácia –, muitas foram as tentativas para concluir o templo, algumas falhadas por falta de verbas. Nesse período não se pensava, no entanto, noutra função que não a de igreja.

O panteão e a lei
Nem mesmo a monarquia liberal, no quadro da qual é criado o Panteão Nacional (Decreto de Passos Manuel, de 26 de Setembro de 1836), define para ele um local. O regime de então queria guardar solenemente “‘as cinzas dos grandes homens’ que se tinham sacrificado na revolução de 1820”, sublinha o historiador Fernando Catroga, acrescentando que a este objectivo se associava outro, o da “reparação do esquecimento a que, há séculos, estava votado o maior de todos os portugueses: Camões”. O escritor Almeida Garrett (1799-1854), que quis vê-lo sepultado nos Jerónimos, foi o mais acérrimo defensor da homenagem ao autor de Os Lusíadas, que eram lidos nas últimas décadas do século XIX como “uma espécie de bíblia da aventura portuguesa no mundo”.

Garrett comparava o mosteiro ao panteão inglês da Abadia de Westminster – onde hoje estão sepultados escritores e e homens de ciência como Shakespeare, Spenser, Tennyson, Dickens, Darwin e Newton – e não com a Igreja de Santa Genoveva, o panteão francês.

Os primeiros “panteonizáveis” neste quadro que se segue ao enaltecimento da figura de Luís de Camões, continua Catroga, são inseparáveis de uma visão que acredita no progresso e rejeita o culto do passado. Procura-se enaltecer “os que melhor exprimiam um pulsar colectivo, não tanto os políticos e os militares, mas, sobretudo, os intelectuais e, entre estes, os poetas”. Numa primeira fase, os eleitos são, assim, “oriundos da ‘República das Letras’, onde o escritor emergia, cada vez mais como um clérigo laico”. Depois de Camões honraram-se nos Jerónimos Alexandre Herculano, João de Deus e o próprio Garrett.

Sublinha ainda o professor de Coimbra, “para quem exageram os que republicanizam em excesso a origem do culto panteónico português”, que na I República o panteão continua a ser os Jerónimos. Só mais tarde, com a Lei n.º 520, de 29 de Abril de 1916, se destina para estas funções o “incompleto templo de Santa Engrácia”, monumento nacional desde 1910. Mas entre esta data e a da sua inauguração passa meio século.

Bandeira do Estado Novo
Vencendo quase 300 anos de espera, Salazar quis ver o edifício terminado em apenas dois - faltava a cúpula que hoje marca aquela zona da cidade, quando se olha a colina a partir do rio – numa grande operação de propaganda de um regime que enfrentava já grandes dificuldades, explica Maria João Neto.

“Salazar transforma a conclusão do panteão numa manobra de propaganda, propondo-se acabar em dois anos o que não se tinha conseguido acabar em séculos”, sublinha, mostrando, como diria o ministro das Obras Públicas no discurso de inauguração, “que o Estado Novo era capaz de ‘pulverizar mitos’, como o da obra inacabada”. Era, por isso, mais importante terminar o edifício do que pensar em quem iria ocupá-lo. “O conceito e o programa do panteão ficaram claramente em segundo plano, porque a discussão se adensou e a comissão criada [em 1965] para a obra não conseguia chegar a conclusões.”

O Marquês de Pombal, a rainha D. Leonor, o Padre António Vieira, o poeta Fernando Pessoa e o escritor Eça de Queirós foram considerados, mas não chegaram ao panteão. A comissão acordou em seis grandes figuras históricas a ocupar os mausoléus no topo dos braços do transepto (o espaço mais nobre) – Camões, Vasco da Gama, D. Nuno Álvares Pereira, Pedro Álvares Cabral, Afonso de Albuquerque e o Infante D. Henrique –, mas, para evitar a trasladação destes corpos, que poderia vir a desagradar à opinião pública, optou-se por evocar a sua memória através de cenotáfios (monumentos fúnebres sem a presença dos restos mortais).

Foi Salazar, acrescenta a também comissária científica do livro Obras de Santa Engrácia, quem desbloqueou a situação, decidindo que iriam para o novo panteão figuras que já estavam provisoriamente sepultadas no Mosteiro dos Jerónimos. Da antiga sala do capítulo saíram, assim, três presidentes da República (Teófilo Braga, Sidónio Pais e Óscar Carmona) e outros tantos escritores (Almeida Garrett, João de Deus e Guerra Junqueiro).

“É curioso ver que o Estado Novo, que tanto enaltecia a história e as suas figuras, não ‘panteoniza’ ninguém. Os que escolhe vêm já de uma sepultura nobre que muitos portugueses consideram ser ainda o verdadeiro panteão nacional”, diz a professora de História de Arte. Esta relação com as homenagens aos “grandes homens” do país durante a consolidação do regime de Salazar, que dá maior relevo a panteões como a Batalha e S. Vicente de Fora, pode explicar-se, avança Catroga, com a “recatolicização da educação cívica e moral, [que] convidada à secundarização de práticas de matriz liberal e republicana”.

Desde a sua inauguração em 1966, o panteão recebeu apenas os restos mortais do general Humberto Delgado (1990), de Amália, de Manuel Arriaga, primeiro Presidente da República (2004), e de Aquilino Ribeiro (2007).

“Este panteão sempre foi pouco considerado no pós-25 de Abril, porque o regime democrático teve dificuldade em aceitá-lo pela sua colagem a Salazar. Não é por acaso que a primeira pessoa escolhida para ali ser sepultada em democracia é um opositor ao Estado Novo", defende a historiadora de arte.

Lembram Neto e Catroga que, quando em 1985 o Estado decide homenagear Pessoa nos 50 anos da sua morte, manda trasladá-lo para os Jerónimos, visto como o “lugar dos grandes”: “De certa maneira, este é o panteão dos panteões, porque também é aquele que preserva os critérios que pautaram a sua fundação oitocentista", diz o historiador.

Foi preciso esperar por 2000 – um ano depois da morte de Amália – para que se vissem definidas as actuais honras do panteão. A Lei n.º 28 estipula que estas têm por objectivo “homenagear e perpetuar a memória dos cidadãos que se distinguiram por serviços prestados ao país, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade”.

É justamente este parágrafo que Maria João Neto defende que deve ser revisto para que Eusébio da Silva Ferreira entre, “sem margem para dúvidas”, no panteão. Gostaria de ver nele acrescentado algo que se referisse a feitos desportivos.

Ainda que o paradigma do mérito literário nunca tenha deixado de pairar sobre o panteão – Sophia está aí para o confirmar –, a ida de Amália para Santa Engrácia, a que se seguirá a de Eusébio, reflecte, na opinião de Catroga, um “alargamento dos critérios definidores da grandeza da figura a ser consagrada”, passando a abranger “personalidades produtoras e produtos da cultura de massas dos nossos dias”. Têm, continua o historiador, “um forte poder de mediatização e de transformação icónica e iconolátrica e dir-se-ia que já estão panteonizados, mesmo antes de entrarem em qualquer panteão”.

Para os dois historiadores, os panteões são uma forma de revivificar actos heróicos ou percursos de mérito capazes de ligar as pessoas a um destino histórico comum, numa sociedade que não pode viver sem mitos e símbolos. Mas os heróis de Santa Engrácia e de outros panteões, de facto, são sempre produto do seu tempo e das suas circunstâncias. “Estas dez personalidades que estão em Santa Engrácia não falarão a todos da mesma maneira, estão longe de serem consensuais. É sempre discutível quem deve ir para um panteão nacional”, conclui Maria João Neto. “A própria ideia de entronizar heróis é discutível. Poucas coisas na história não são.”

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