A demissão da administração da Casa da Música é de "extrema gravidade"

O musicólogo Rui Vieira Nery diz que é uma matéria que, pela sua gravidade política, tem de ser decidida pelo primeiro-ministro, que tem a tutela da Cultura

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A Casa da Música foi inaugurada a 15 de Abril de 2005 Paulo Pimenta

A demissão em bloco da administração da Casa da Música, esta terça-feira, e as suas consequências são vistas sem muitas nuances por criadores e agentes culturais: de “extrema gravidade” a "enorme perigo".

Para Miguel Lobo Antunes, administrador da Culturgest, uma fundação da Caixa Geral de Depósitos, a Casa da Música, “por mérito das pessoas que a dirigem e das que lá trabalham, tornou-se numa instituição de primeiro plano da vida cultural nacional, com repercussão internacional”. Acrescenta que a demissão da administração “é muito preocupante”.

“Neste país aflito, admitir que sucumbam instituições de refúgio e de alento, parece-me duma extrema gravidade”, continua Lobo Antunes. A Casa da Música tem “uma excelente programação”, que abrange todas as músicas, “grupos residentes de grande qualidade e já com consagração internacional”, tendo contribuído para “o desenvolvimento da música e dos músicos portugueses”, com “uma grande adesão do público” e “um serviço educativo exemplar”. Tudo isso justifica “a enorme importância que a Casa da Música tem na nossa vida cultural”.

O compositor João Madureira diz-se muito apreensivo com a demissão da administração da Casa da Música, fruto de novos cortes orçamentais impostos pela Secretaria de Estado da Cultura, e aguarda com ansiedade os desenvolvimentos da situação.

“A Casa da Música teve um papel inestimável na descentralização da música em Portugal”, aponta o compositor, cuja primeira colaboração com a instituição se deu logo ao início, com uma peça composta com Pedro Carneiro, Glosa, de 2001. Por acção do director artístico António Jorge Pacheco, a Casa da Música "conseguiu uma programação alternativa muito voltada para a contemporaneidade, quer no que diz respeito à música contemporânea propriamente dita, quer no que diz respeito ao cruzamento com outras áreas, como o jazz, o rock e a música popular". Conseguiu-se, continua o compositor, "criar uma programação realmente a par do que se faz nos nossos dias na Europa”, ilustrando, por exemplo, com a forma como o Remix Ensemble, o conjunto de música contemporânea da instituição, “permite que haja uma circulação efectiva da obra dos compositores portugueses”.

Em sentido mais lato, continua Madureira, é “um perigo enorme” cortar com a influência da Casa da Música na sua cidade, o Porto. “A cultura é das áreas de maior rendimento na economia, pelo seu enorme retorno. Está muito ligada à questão do turismo, por exemplo. Uma cidade sem oferta cultural não chama turismo nenhum.” Termina com uma exemplo: “Irei a Amesterdão a 12 de Janeiro propositadamente para ver [a ópera] Einstein on the Beach. As cidades que têm oferta cultural ganham com isso.” E “estamos todos a ganhar com o desenvolvimento conseguido com a Casa da Música".

O musicólogo e ex-secretário de Estado da Cultura Rui Vieira Nery acha que “seria trágico, para a vida cultural portuguesa, se o projecto da Casa da Música viesse a abortar”, e defende que se trata de um projecto com uma dimensão que “transcende a margem de decisão” do secretário de Estado. “Esta é uma matéria que, pela sua gravidade política, tem de ser decidida ao mais alto nível, ao nível do primeiro-ministro, que tem a tutela da Cultura”.

Lembra ainda que a Casa da Música foi sempre “um projecto consensual em termos político-partidários e que “seria muito mau quebrar agora esse consenso por causa de verbas que, em termos macroeconómicos, são irrelevantes”.

Nery deixa ainda um aviso: “A Casa da Música é hoje um organismo integrado numa rede internacional de primeira grandeza, algo que deu muito trabalho a construir e que pode ser facilmente destruído por um golpe súbito.” Para manter a posição que alcançou, argumenta, a instituição “não pode estar sujeita a estas estratégias de stop and go”, já que, se começar “a cancelar compromissos assumidos internacionalmente, perde rapidamente toda a credibilidade e será muito difícil conseguir recuperá-la”.

Adolfo Luxúria Canibal é apanhado de surpresa. Não sabia ainda da demissão em bloco da administração da Casa da Música, nem, naturalmente, das razões evocadas para a decisão. Já informado, ele que acompanhou a implantação e desenvolvimento da instituição, quer enquanto músico de palco e DJ, quer enquanto espectador, diz que a administração "não tinha outra hipótese senão demitir-se" e não poupa nas palavras: "É mais um passo titubeante deste Governo. Anda para a direita e para a esquerda, não pensa as coisas com antecedência e faz dos outros gato-sapato. Não sabem que na cultura as coisas têm que ser pensadas com antecedência e que os contratos têm que ser fechados com muitos meses de antecedência, se não, nada acontece.” A Casa da Música é, na sua opinião, uma instituição que “mudou o Porto”: “Veio dar mais oferta cultural e muita variedade, sobretudo na música erudita, com iniciativas e programações que criaram uma grande dinâmica à sua volta. Apanharam diversos públicos e criaram hábitos de consumo de música - tal como aconteceu na Lisboa [Capital Europeia da Cultura] 1994, que mudou os hábitos de consumo da cidade.”


Com Isabel Salema
 
 
 
 
 
 

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