A colmeia de Thomas Walgrave

No número 99 de uma rua de Santos, em Lisboa, o belga que dirige o Festival Alkantara construiu um espaço à medida da informalidade com que trabalha.

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Na colmeia de Thomas Walgrave Ricardo Rezende

Um homem, uma janela a dar para o rio e uma gaivota num voo rasante. O homem à janela levanta os olhos do computador, interrompe a maratona de concentração, e sorri. “É a Adelaide”, apresenta. Adelaide, irmã de Dora, a que não tem uma pata e segue o voo da primeira. Não são intrusas. São visitas diárias de Thomas Walgrave desde que, ainda era Verão, descobriram o sabor da comida de gato na imensa varanda que avança sobre o casario, num sítio em que Santos, em Lisboa, só tem pela frente a descida até ao Tejo.

É uma da tarde de um dia de céu cinza, luz filtrada por nuvens altas, chuva que se anuncia e o único som que se ouve no primeiro andar do número 99 da Calçada Marquês de Abrantes, sede do Festival Alkantara, é a voz de Kathleen Ferrier a cantar Gustav Mahler. E, agora, o piar das gaivotas a sobrepor-se, como numa praia, num barco carregado de peixe, numa terra com tempestade à vista. Thomas larga o computador, baixa o som da música, tenta ignorar o ciúme das duas gatas que também já o rondam e avisa que vai dar de comer às gaivotas.

Se há por ali uma rotina diária, aquela é a única certinha embora sem hora marcada. Num dia normal, a cozinha não estaria vazia, mas houve directa, mais uma entre os que trabalham para o Alkantara, para cumprir os prazos de entrega das candidaturas à Direcção-Geral das Artes e tentar um apoio que já se sabe irá diminuir e exige, pela primeira vez, um pensamento a longo prazo, traçar planos para quatro anos.

Stress, sono adiado, angústias para gerir, mas Adelaide e Dora, as gaivotas que são machos mas têm nomes de fêmeas – porquê? Porque sim, são gaivotas, senhores, e não gaivotos e que outros nomes poderiam competir com Dora e Adelaide? É tentar justificar o que vem por instinto, a razão não foi consultada para o baptismo. Elas só querem saber da ração que Thomas tira do armário e lhes serve no muro do terraço. O que se segue é uma aproximação ao alvo em muito semelhante ao de um avião a fazer-se à pista, voo largo, circular, que se vai estreitando até ao debicar do pedaço. Tudo observado por uma das gatas que espreita debaixo da longa mesa de madeira, posição de caçadora em suspenso porque o medo da presa é maior que a vontade da caça.  

Parar em Alkantara
É o intervalo na tensão de quem tem, desde 2009, a responsabilidade da gestão artística do mais prestigiado festival de artes performativas do país, um belga de Antuérpia, de 46 anos, cenógrafo/ desenhador de luzes, formado em Antropologia e História de Arte, que tanto gosta do mar como do deserto por haver algo de comum nessa imensidão; fundador da companhia flamenga Stan, em 1989, e que, com ela conheceu Portugal em muitas digressões.

Um espectáculo prendeu-o à cidade. Berenice, de Racine, produção da Culturgest para a Casa dos Dias da Água. Estava cansado, queria uma paragem sabática, mudar de vida e a vida fez-lhe o jeito em 2005, não necessariamente por esta ordem: apaixonou-se por uma portuguesa, deixou a Stan, alugou uma casa na Mouraria, ficou a saber tudo sobre o bairrismo lisboeta e foi fazendo trabalho de freelancer dentro e fora do país. Enquanto pode e não se cansou. O momento do clique foi uma produção em Paris. Não gostou do trabalho, não gostou do frio, não gostou de passar horas no metro. “Estava farto de Paris e cheio de saudades de Lisboa.” E outra vez a vida a fazer o jeito. Um telefonema de Mark Deputter, o ex-director artístico e fundador do Festival Alkantara, a convidá-lo para ocupar o lugar naquela janela a ver o rio e a programar o evento que já conhecia tão bem de tanto ter colaborado com ele. Perfeito. Lisboa era agora para estar e já não para ir e vir.

Ouve-se Katheleen Ferrier, agora um murmúrio debaixo da voz calma de Thomas, num português amaciado com a pronúncia flamenga. Voltou à cadeira, ao computador, à janela e é sobre a luz que fala. Cliché? E então? É verdade que a luz, aquela que todos os dias lhe ilumina o espaço onde trabalha e no qual passa mais horas do que em casa, é “incrível”. Sabe o peso do adjectivo e mesmo assim carrega nele. Olha para fora, como para confirmar o bom uso da palavra. “A língua é uma coisa muito estruturante, na cabeça”, continua, inconformado por ainda não dominar as ferramentas que lhe permitam passar pouco mais do que de um praticante “passivo” do português, ele que “adora” escrever, outro verbo forte, tal qual a relação com as palavras.

É em português que escreve os projectos, mas depois há a frustração. “Não tenho a liberdade em português que tenho em flamengo, a minha língua, ou no francês ou inglês. Há uma espécie de pobreza de estruturas e provavelmente das construções que eu uso, e repito muitas vezes.” Sorri, sorri quase sempre quando fala de um sentimento forte, confessa uma fraqueza, apresenta uma ideia. É a sorrir que admite que os textos seguem depois para alguma das pessoas com quem trabalha, que fazem a edição, que tornam tudo mais bonito. “Sinto falta de aulas de forma mais estruturada para poder usar um nível mais literário, mais sofisticado.” Usar e não apenas receber os da literatura difícil que já lê com rapidez. Fala em António Lobo Antunes. Um exemplo. Mas conhece bem a poesia de Fernando Pessoa. Quem não, entre tantos anos a trabalhar em teatro, encenações?

Receita à prova de nervos
Thomas Walgrave anda numa conversa solta que por vezes se fixa no tal longo prazo. Não diz, mas nota-se a evasão em pequenos momentos de silêncio. Três semanas para mostrar o que vale e que estão a chegar ao fim. 31 de Dezembro de 2012. Nem mais. Em vez dos três meses dos anos anteriores, o tempo normal para elaborar as tais candidaturas cujas regras mudaram todas, de repente. Não fala delas, demasiado ocupado com um conteúdo que não sabe se vai poder realizar. Para já, e apesar das olheiras, estrutura-se nesse curtíssimo prazo para planear ao longe. “É um exercício muito saudável, obrigar a sentar e a escrever, encontrar palavras para quatro anos. O essencial é tentar fazer um exercício o mais honesto possível, escrever para ti e não para quem está a ler ou irá ler. Sempre achei isso a forma mais justa, mais correcta, e se calhar também a mais produtiva para fazer uma candidatura.”  

Thomas é, neste momento, ao contrário do que costuma, um homem sentado. Thomas, o irrequieto, o impaciente, o que prefere sempre a equilibrar-se na bola gigante de ginásio que tem no escritório ao conforto da cadeira. Na quarta-feira desta conversa, a bola ficou a um canto, o cansaço acumula-se e os olhos e a concentração só se mantém ligados à custa de muito chá de gengibre fresco. Vai uma receita? Há uma câmara e ele fixa-a. “Comprar gengibre, cortar em rodelas, pôr num copo, deitar água quente por cima e beber. Pode-se voltar a encher com água que este gengibre dá para passar a tarde. Melhor que café. Deixa-me alerta sem me por nervoso.” Simples. Vale-lhe a mercearia do paquistanês ali bem perto e o espanto do homem que não entende o destino “das toneladas de gengibre que lhe compramos”. Ri. “É o nosso dealer”. 

E é com um copo sempre na mão, como quem segura uma super-dose de café, que abre a porta com o cuidado de fechar a intermédia, não vão as duas gatas fugir; que responde a uma ou outra pergunta dos que vão chegando de um sono apressado, que fala do espaço à volta que não podia ser melhor para quem, como ele, escolhe sempre a informalidade da conversa à mesa, casual, ao acaso, à reunião séria com hora marcada.

Sala ampla, tecto aberto à tal luz, tábuas corridas, escadas que levam lá acima, não se sabe bem onde, a uma estrutura de madeira que suporta o telhado e de onde há a ilusão de que pode vir sempre alguém. Depois, dois gabinetes, quase sempre de porta aberta, uma cozinha equipada com tudo o necessário para se comer ou cozinhar à séria e o tal terraço a que se convencionou chamar barco, o sítio onde as gaivotas pousam. “São dois edifícios cedidos pela câmara de Lisboa, em 2007. Eram uma ruína. Num primeiro, fizemos obras de recuperação, tentando respeitar o mais possível a alma das paredes. O segundo espaço, aqui atrás, ainda está à espera de que se façam obras.”

Silêncio e Mahler
Estamos virados a sul, para o rio. Do outro lado do corredor, depois da sala, outros gabinetes, espaços cedidos a outras estruturas ligadas às artes. Materiais Diversos, Bomba Suicida, Mundo Perfeito e a Sumo, estrutura de apoio a artistas em circulação. Lá em baixo, depois de passar a porta larga com moldura de pedra antiga, cheira a madeira e a um tempo que se foi mantendo. É o espaço destinado aos ensaios, a residências de artistas que andam pela cidade. Não há a perfeição técnica de um palco de teatro, mas a liberdade de uma open-box.

Em dias normais, Thomas anda nesse sobe e desce entre o planeamento, a discussão e a experimentação. Claro, “este espaço é maravilhoso para trabalhar”. Chama-lhe “colmeia” pelas muitas vidas que guarda e pelo cruzar de gente e experiências. Pede a essa colmeia o que pede a uma casa onde passa muitas horas, onde vive das dez da manhã às oito da noite, onde um dia nunca é igual ao outros, onde se bebe café junto, se almoça à volta da mesma mesa.  “Este espaço é o nosso BI”, resume.

Dele, há outras marcas soltas, os poucos objectos que guarda no gabinete, onde a porta só é fechada quando precisa do isolamento para a concentração. Uma mesa, um portátil, um candeeiro de mesa, duas cadeiras, a tal bola e um móvel de madeira forrado a veludo gasto, assento que não suporta pesos. “Gosto muito de trabalhar com madeira, mas ainda não consegui arranjar este móvel. Talvez falte a cola certa.” Por agora é lá que pousa o casaco e um capacete.

Thomas deixou a Mouraria e mudou-se para o Estoril. “Preciso do convívio diário com o mar”, descobriu. Como se Lisboa lhe tivesse dado tudo e ainda essa proximidade. Não quer deixar a cidade. Pensa nela com um para sempre de parêntesis abertos. Se tiver de sair, se um dia não puder mais trabalhar por aqui, sabe que pode trabalhar fora e precavê-se. Seria a única coisa a tirá-lo da luz – sim, outra vez a luz --, mas sobretudo das pessoas, do café como não há outro na Europa. Não lhe falem em rankings de qualidade de vida que põem Genebra nos píncaros. Lisboa não os cumpre, mas Thomas, o belga de Antuérpia, não a troca, de boa vontade, por nenhuma outra cidade da Europa.

Agora fecha a porta. Pede silêncio, só cortado pela música de Mahler, Kindertotenlieder. Reabastece o chá e digere a perda de um texto escrito às três da manhã.  

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