Os nossos purgatórios deram o Prémio Leya a Nuno Camarneiro

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Nuno Camarneiro diz ter já "alguns projectos em fila, muitas perguntas sem resposta" Rui Farinha

Debaixo de Algum Céu, que deverá ser lançado em Março, é o segundo romance de Camarneiro, investigador das Universidades de Aveiro e do Porto formado em Engenharia Física

Nos quatro anos que passou em Florença para o doutoramento em Ciência Aplicada ao Património Cultural, Nuno Camarneiro (n. 1977), engenheiro físico, costumava comer com frequência numa pizzaria chamada Purgatório. Noutra cidade talvez fosse mais difícil explicar este nome, mas, afinal, Florença é a cidade de Dante, referência maior das letras italianas, "il sommo poeta".

"Só agora me estou a aperceber", dizia ontem ao PÚBLICO o vencedor do Prémio Leya 2012, "habitei a cidade de Dante, a influência dele estava por todo o lado". "Pode ter vindo daí", desse lastro perene, a ideia do rendilhado de purgatórios individuais que tecem Debaixo de Algum Céu, candidata ao prémio entre 270 obras (entregues sob pseudónimo) e escolhida "por maioria" entre sete finalistas.

Ontem, na conferência de divulgação do vencedor da quinta edição do prémio - o maior, em termos pecuniários, para a literatura de expressão portuguesa (100 mil euros, o mesmo que o Camões, um prémio de carreira) -, Manuel Alegre, presidente do júri, falou na "qualidade literária" de uma escrita "precisa", que "flui sem ceder à facilidade". Falou também na "coerência com que é seguido o projecto", na "força e no desenho das personagens" e na "humanidade subjacente ao que poderá ser lido como uma alegoria ao mundo contemporâneo".

O júri constituído ainda por José Carlos Seabra Pereira, José Castello, Lourenço do Rosário, Nuno Júdice, Pepetela e Rita Chaves, sublinhou ainda a delimitação intensiva "da figura fulcral do "romance de espaço" e do "romance urbano"" numa narrativa que decorre à beira-mar mas sempre no interior de um prédio.

Vivem-se os oito dias entre um Natal e um Fim do Ano. Os habitantes do prédio e os seus caminhos colidem na noite forçada do apagão que sucede a uma tempestade.

Há a família dita "normal", com o pai, bancário, a mãe, professora de Inglês, a filha, uma adolescente-tipo, e o irmão mais novo, a criança-problema. Depois, há um padre em crise de fé, uma velha viúva solitária, e um casal com um bebé numa relação a chegar aos limites. Há o zelador do prédio, antigo marinheiro e pescador, e um jovem informático que trabalha em casa, sobretudo durante a noite, para uma empresa que quer criar trabalhadores virtuais. Por fim, há ainda a única presença exterior ao edifício - um proscrito - e uma personagem que é espaço: o apartamento símbolo de uma história de doença e dor, um andar cujo inquilino morreu e cuja mulher não voltou a ser vista. "Um andar que é um vazio cheio de coisas", como diz a editora Maria do Rosário Pedreira, responsável pela divisão de novos autores da Leya.

Matar os pais

Na Leya, em 2011, Maria do Rosário Pedreira foi a editora da primeira obra publicada de Camarneiro, o romance No Meu Peito Não Cabem Pássaros, um trabalho muito diferente deste mais recente.

Para essa obra, Camarneiro trabalhou três personagens: Fernando, Jorge e Karl, cujos dados biográficos apontam para retratos de Fernando Pessoa, Jorge Luis Borges e Karl Rossmann, a personagem principal de América, de Franz Kafka. Maria do Rosário Pedreira fala de um trabalho em que cada capítulo é quase uma micronarrativa e que "mostra como os grandes génios têm uma coisa em comum: serem deslocados, desadaptados". Camarneiro, por seu lado, fala de uma obra em que "estava a arrumar a casa".

"Foi um livro para matar os meus pais literários", dizia ontem ao PÚBLICO o escritor, em breve conversa telefónica a partir da Universidade de Aveiro, onde é investigador. "Estava a arrumar a casa em termos das minhas influências e dos autores que me incendiaram a coisa da escrita." O caso de Debaixo de Algum Céu, que deverá ser lançado em Março, é distinto: "Agora já sei que sei escrever e, portanto, fui olhar em volta. [Este livro] nasce já não de dentro da literatura, mas de olhar em volta."

O escritor diz que não procurou esboçar uma representação social ou de um tempo. Ou seja, que não tentou conscientemente construir um microcosmo como espelho da macro-realidade contemporânea, procurando a alegoria mencionada pelo júri. "Acontece-me que o retrato final seja mais inadvertido do que planeado. Costumo trabalhar as personagens uma a uma dentro da trama. Não tenho distância para ver o retrato final, completo."

Se houve um questionamento como ponto de partida, diz ainda, foi pensar no que vemos no dia-a-dia, observando, em desconhecimento, aqueles com quem nos cruzamos. "Nessa observação, há dimensões que não nos são acessíveis e que são as que mais definem as pessoas. Interessam-me aquelas pessoas, cada uma como laboratório de sentimentos, histórias, emoções."

É o mesmo que falar nos secretos "purgatórios individuais" em ebulição dentro de todos nós.

Outro interesse: "Dar um espaço físico ao sofrimento, materializar a dor". E aí nasceu aquele prédio, habitado por gente comum.

Referindo uma "linguagem de tirar o fôlego", Maria do Rosário Pedreira aponta nesta obra de capítulos curtos um texto "conciso, poético, que denota muita cultura": "Vemos na sua escrita os muitos autores que terá lido, apesar de ser tão novo."

Ao contrário do anterior vencedor, que surgiu do nada para se tornar no segundo autor de língua portuguesa mais vendido do ano em Portugal (ver caixa), há já algum tempo que Camarneiro escreve. Maria do Rosário Pedreira conheceu-o em 2009, quando foi a Pisa a uma conferência convidada por Catarina Nunes de Almeida, à época leitora do Instituto Camões na cidade.

Num email

Catarina Nunes de Almeida foi ao aeroporto buscá-la com um amigo. Jantaram juntos e, meses depois, Camarneiro fez-lhe chegar à QuidNovi uma colectânea de micronarrativas. "Já denunciavam o que viria a fazer, uma linguagem muito cuidada", recorda a editora. Que conta como, ainda nesse ano, Valter Hugo Mãe lhe mandou um email sobre a mesma obra. Tinha-lhe chegado entre tantas outras de jovens escritores, mas a sua qualidade destacara-se. Maria do Rosário Pedreira entrou então em contacto com Camarneiro. "Disse-lhe que era muito bonito, mas que as micronarrativas são muito difíceis de comercializar em Portugal. Desafiei-o a escrever um romance. "

No Meu Peito Não Cabem Pássaros apanhou-a editora já na Leya, um dos maiores grupos editoriais portugueses, com mais de uma dezena de editoras e chancelas não só em Portugal, mas também Angola, Moçambique e Brasil.

Maria do Rosário Pedreira refere-se ao mercado conquistado pelo anterior vencedor do prémio destinado a um romance inédito em língua portuguesa: "A partir do momento em que o prémio disparou, com o último vencedor, creio que este tem todas as condições para almejar ao sucesso. Até porque é uma obra muito próxima das pessoas, que provoca muita emoção. Há uma passagem em que chorei."

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