A tragédia da paixão

Dos espectáculos em cena no primeiro mês do presente ano, dá-se a coincidência de dois deles partirem do mesmo texto: Fedra (1677), uma das tragédias escritas pelo dramaturgo clássico francês Jean Racine. Um dos espectáculos é encenado por Rogério de Carvalho e estreou no fim do mês passado, a 28 de Dezembro, no Teatro Municipal de Almada, e o outro por Ana Tamen, tendo estreado na semana passada, a 11 de Janeiro, no Teatro Municipal Maria Matos. O primeiro resulta do trabalho desenvolvido com a Companhia de Teatro de Almada, enquanto o segundo é uma co-produção entre o Grupo Cassefaz e o Maria Matos.O papel de Fedra, a mulher de Teseu, rei de Atenas, que se apaixona pelo seu enteado Hipólito, é incorporado por Teresa Gafeira no palco de Almada e por Beatriz Batarda (na foto) no de Lisboa. São estas actrizes que nos colocam perante o crescente mal-estar que Fedra vai experienciando como consequência desta paixão inconfessável, que acaba por revelar à sua ama, Enone, e depois ao próprio Hipólito, pensando que Teseu está morto. Ao saber que Teseu está vivo, aceita a sugestão de Enone: acusar Hipólito de a ter tentado violar. Estas acções, que decorrem da impossibilidade de Fedra controlar a sua paixão, acabam por ter trágicas e destrutivas consequências: Enone suicida-se, Hipólito é punido com a morte por Neptuno, a pedido do pai, e Fedra envenena-se.
Há, portanto, uma sucessão de emoções que compelem as personagens a caminhar para a destruição e morte. Esta dimensão emocional é explorada de forma depurada na encenação de Rogério de Carvalho, o que se reflecte não só no corpo dos actores como na cenografia de José Manuel Castanheira e no desenho de luz de José Carlos Nascimento. O espaço e a iluminação revelam e intensificam os corpos e o texto que é dito, criando uma série de nuances de exposição e ocultação. Mas por depuração não se entenda hieratismo. A título de exemplo, pode referir-se o corpo da actriz Laurinda Chiungue, no papel de Enone, que se apresenta ligeiramente deformado, ancorando em si uma espécie de exteriorização do carácter da personagem. Os gestos e posturas físicas dos actores salientam a densidade trágica do texto que é dito, sem pretenderem ilustrá-lo.
Já no espectáculo encenado por Ana Tamen há um excesso de ilustração do texto, agravado por um trabalho corporal que raia o kitsch e que, em alguns momentos, chega mesmo inteiramente a sê-lo. Os actores, ao deambularem pelo espaço, ao encostarem-se às paredes do cenário ou ao deitarem-se no chão, tentam expressar com os seus movimentos a emoção que os versos encerram, mas apenas conseguem a incompreensão destes mesmos por parte do espectador, tal é a desadequação entre a linguagem corporal e a linguagem textual. O movimento torna-se, assim, um empecilho para o entendimento e audição do texto, estagnando, no lugar de libertar, o seu sentido trágico e o experienciar deste por parte do espectador.
Estamos, portanto, perante duas propostas estéticas de encenação do mesmo texto (ainda que a partir de duas traduções distintas), que acabam por condicionar o trabalho dos actores presentes em cada um dos espectáculos, já que num se explora a intensificação e noutro a ilustração kitsch.

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