Cidade suspensa

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Onde antes corriam esgotos em ruas que não iam dar a lugar algum, hoje vêem-se os despojos de quem se mudou à pressa e uma vegetação que cresce solta

Até ser demolido, em 2008, o bairro de S. João de Deus era algo que a cidade preferia esquecer. Agora, já só existem as casas baixas da rua 1 e uma escola. E a cidade continua a esquecê-lo. Texto de Patrícia Carvalho e Ilustração de Mário Bismark

Perdi a memória da primeira vez que fui ao bairro de S. João de Deus. Já trabalhava, claro, e fui lá em serviço, claro, porque, enquanto o bairro existiu, ninguém ia lá por acaso. Não se passava pelo S. João de Deus. Quanto muito, avistavam-se os acessos que conduziam às suas torres amarelas e vermelhas e também às casas brancas e baixas que foram a sua raiz, em 1944. Não dávamos por nós perdidos no S. João de Deus. Mesmo que nos enganássemos numa curva da estrada e inadvertidamente déssemos de caras com o seu espaço denso, ele como que nos esbofeteava, mandando-nos para longe dali.

É claro que havia muita gente que, todos os dias, seguia os caminhos que iam dar ao bairro. Os milhares de pessoas que o habitavam (quatro mil a seis mil, não se sabia ao certo). Os professores que trabalhavam na escola do 1.º ciclo. Os técnicos sociais que ali passavam os dias, acudindo a quem podiam. Os toxicodependentes que se esqueciam do mundo e eram esquecidos pelo resto da cidade, desde que lá permanecessem. Os agentes da PSP que trabalhavam na esquadra exígua e sem condições.

Ali era o "Tarrafal", para onde seguiam os "indesejáveis" da cidade, nas décadas de 1950 e 1960. Ali nasceu o "Vale dos Leprosos", onde os toxicodependentes iam morrer. Ali ficava a "Sucata", última morada da droga, antes de o bairro ter sido demolido, em 2008.

O bairro de S. João de Deus era a cidade do Porto que muitos portuenses nunca viram. Um emaranhado de esgotos a correr por ruas esburacadas e apinhadas de lixo, electrodomésticos velhos, carcaças de automóveis, cães vadios e ratos. Era o movimento constante de gente nas portas e nos caminhos, de correrias e olhares desconfiados. Hoje, quase tudo isso é apenas uma memória. Se dúvidas houvesse, lá está a omnipresente Wikipédia a indicar: "O bairro de São João de Deus foi um bairro portuense..."

A informação não está correcta. É verdade que a Câmara do Porto demoliu, por completo, os 25 blocos construídos ao longo de décadas. Mas as casas brancas ainda lá estão, como um dedo acusador na face de todos os que deixaram o bairro degradar-se até ao impossível e foram incapazes de o salvar. Muitas estão emparedadas, outras em ruínas, e os moradores que lá ficaram parecem fantasmas, espreitando a medo pelas janelas entreabertas, curiosos por saber quem é que ainda passa ali. Alguém que se lembre que eles existem?

O resto do bairro desapareceu, de facto. Onde existiam blocos habitacionais enxameados de gente há hoje colinas de vegetação que cresce solta. Cravados no solo ficaram pedaços de tijoleira que não foram arrancados pelos bulldozers. Há buracos onde já existiram tampas de saneamento e aluimentos de terra em ruas que não vão dar a lado algum. Os despojos de quem partiu à pressa ou foi forçado a partir ainda se apresentam sob a forma de carcaças de colchões e televisores. Naquelas colinas batidas pelo vento é difícil recordar onde ficava cada prédio. Onde era a sede dos Vikings, a única associação do bairro. Onde ficava a mercearia ou o centro de dia. Os únicos sinais de vida são os velhos que espreitam, como fantasmas, nas casas baixas da rua 1 e as vozes de crianças, transportadas pelo vento, da escola que ainda funciona.

Parece que naqueles terrenos ficou uma cicatriz demasiado profunda para ser disfarçada por um qualquer projecto. É como se, ali, se tivesse suspendido a cidade. Depois de anos de ebulição, nada acontece. Os planos da Câmara do Porto para substituir o S. João de Deus por um bairro mais pequeno, com 150 fogos em vez dos 706 que existiam, e apenas 90 casas brancas, em vez de 144, parecem nunca ter existido. Quem disse isso? Quando? Porquê? Já ninguém se quer lembrar. E o Porto, da mesma forma que não queria ver o bairro quando ele era um gigantesco problema social, continua a não ver o que dele sobrou. É como se aquele enorme espaço no extremo da cidade não fizesse parte do mundo real. O bairro de S. João de Deus faz-me pena. É uma "não cidade" há tempo de mais.

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