O sol subindo na noite

I

A menina aparece como uma figura minúscula no pequeno adro da igreja. O homem é uma bola. Matéria humana enrolada. Está debruçado sobre o próprio frio, a fome, a vergonha, a tristeza, a revolta. É isso que a menina vê quando ele desembrulha o corpo e se volta para ela com os olhos encovados. Não sabendo nada do que espera um adulto, ela vê que aquele adulto está desapontado com a vida e consigo mesmo. Está velho, tem o rosto pesado de rugas.

Sendo um desconhecido, na sua história e naquela ocasião de o encontrar abandonado por ali como nem os animais se viam – ela, pelo menos, nunca tinha visto -, havia qualquer coisa de familiar. Era, afinal, um episódio com algo de fundador. Nas mais simples histórias tradicionais, em muitas das histórias infantis, a tragédia era o maior motor do carácter humano e a bondade um poderoso instrumento de felicidade.

A desgraça, que podia ser como uma espécie de clima particular em que sobre alguém chovia sem parar, já a pressentia; tinha ideia de alguns segredos se movimentarem por vezes pela sua casa.

Entre o homem e a menina, está uma enorme pilha de lenha, em formato piramidal, a base criando um círculo gigante no centro da praça. Ergue-se já à altura dos sinos da igreja. A menina veio ver quanto cresceu a pirâmide na última hora. O homem espera que venham acender a grande fogueira, como um sol na noite. A aldeia inteira está recolhida, prestes a começar a ceia de Natal.

A menina então desvia o olhar e corre para casa com as pernas nervosas. O homem dobra-se novamente, aquece as mãos com o sopro da boca.

II

Quatro horas depois, a menina batia palmas ao encanto do fogo. Subindo, subindo, fez-se um clarão de apagar estrelas. Quando o frio se sentia instalando como sincelo nas costas, ela rodava sobre si mesma, dando a cara ao resto da noite. Depois tornava a virar-se e a sentir o quente até dentro da boca quando se ria. Estendia as mãos para a fogueira e virava-as de um lado e do outro como carne a assar. O círculo estava completo de gente, o adro da igreja ruidoso. Os rapazes da aldeia desapareciam à vez para repicar os sinos. Tudo acontecia como planeado, como em todos os Natais, porque na aldeia sempre mantinham a tradição.

Em casa, tudo se tinha passado também como devia, com a mesa posta na sala, o pinheiro e o presépio, que tinha feito com os irmãos com musgo e usando farinha para a neve, perfeito; as botas com o cano mais alto, junto da lareira, tinham aparecido cheias de doces, e cada um tinha tido um pequeno presente. Excepto que tinha havido na mesa mais uma pessoa.

O estranho não chegou, naquela noite, a contar a sua história. Mas como tinha sido ela a encontrá-lo parecia-lhe que ele mesmo era uma história para ela, um presente seu e, mais do que os irmãos, brincou com aquele homem vestido como um boneco de trapos. Junto da lareira, fizeram jogos com as mãos, que o homem parecia conhecer. Um, dois, três, mãos nas mãos, novo jogo. De onde ele veio também haveria jogos, haveria certamente crianças. Tinha observado o rosto do homem transformar-se durante a noite.

No adro da igreja, não o vendo, não ficou aflita. Estaria em casa com o pai. A mãe tinha dito ao estranho que ficasse até ao dia seguinte.

Com o fogo ainda tendo muito para arder pirâmide acima, entraram para a missa do galo. Ela estava cheia de sono mas queria ficar acordada até ao fim da missa, depois regressar a casa, ver de novo o estranho, e depois continuar acordada, não queria voltar a dormir.

Também na missa tudo era igual. Era ela que estava diferente, por causa daquele pequeno diálogo que tinha acontecido no adro ainda vazio quando ela voltou, logo depois de ter descoberto o homem, quase arrastando a mãe pela mão.

- Como se chama? - A delicadeza com que a mãe se dirigiu ao homem fê-la logo

perder o medo. – Olhe que ainda se constipa, venha daí aquecer-se.

O homem balbuciou uma desculpa e desejou-lhes uma boa noite. Olhando para a menina, acrescentou:

- Que sorte tem...

Que sorte tem de ter uma família. A menina imediatamente foi completando a frase para dentro. Que sorte tem de ter uma família boa. Estava surpreendida e triste mas ao mesmo tempo excitada porque havia naquela frase uma revelação. Que sorte tem de ter uma casa. Que sorte tem de ter uma casa quentinha. Sentiu-se crescer. Que sorte tem de ter comida. Que sorte tem de ter umas canetas de cor. Que sorte tem de ter as amigas. Foi completando sem saber que seria um exercício que se esforçaria por continuar durante o resto da vida. Que sorte tem de ter a aldeia.

O homem continuou a dizer que não. A mãe continuou a insistir.

- Então diz à minha filha que sorte que ela tem e depois não quer partilhar a sorte com ela? – disse a mãe, tocando ao de leve no homem – Venha daí.

- Venha, venha! - insistiu a menina, e quando o homem se levantou e começou a caminhar, ela tinha seguido aquela figura alta e magra em triunfo.

III

No dia seguinte, dia 25 de manhã, o adro está escuro da lenha queimada. O cheiro é inebriante, só o cheiro traz o calor. Continua a não nevar. Também não chove. Faz um frio parado.

Vai ter com as outras crianças. Têm muito que comentar, dos doces e dos pequeníssimos presentes. Brincam de escondidas e de apanhada.

As mães acabam de preparar os almoços. Os pais voltam a acender as lareiras que se apagaram durante a noite. Não tarda as crianças têm de voltar às suas casas.

A menina, a brincar no adro da igreja, já quase esqueceu o estranho. Sabe que partiu depois de comer qualquer coisa de pequeno-almoço. Levou um casaco novo que a mãe lhe deu e num saco mais algum agasalho e mais qualquer coisa para comer pela viagem.

A mãe contou-lhe que o homem não vivia longe dali e ela assentiu que ainda bem, satisfeita por a mãe partilhar com ela o destino daquele homem. Ele ficaria bem, disse a mãe. Ia feliz de ter passado a consoada com a tua alegria, disse-lhe ainda.

Mas dias depois e até semanas depois, quando cruzava o adro da igreja, de vez em quando lembrava-se daquele homem que lhe parecia ser dois: um sentado enrolado tremendo, outro uma figura esguia de pernas compridas que não bamboleavam. Havia ainda um terceiro que ela imaginava a pé saindo da aldeia, passando pelo mato onde cortavam os pinheiros de Natal, e aí ficando como uma criatura mágica, depois de dar raiz e de o gelo o apanhar em movimento como apanhava os ramos seguindo a direcção do vento.

Anos mais tarde, Edília teve que confirmar com a mãe que aquela figura do homem sozinho no adro de facto tinha existido, de tal maneira parecia saída de um livro. A mãe confirmou. Lembrou-se que quando se aproximaram dele para o trazer para casa, chorava. Contou também, que algum tempo depois, não sabe quanto, o mesmo homem bateu-lhes à porta. Tinha vindo de propósito para agradecer.

Edília Pena tem agora 36 anos. Tem dois filhos pequenos e assim que chegarem aos seis, sete anos, a idade que ela tinha naquele Natal no início dos anos 80, contar-lhes-á esta história. Quando passa por algum sem-abrigo no centro de Aveiro e o filho mais velho faz uma pergunta, apontando para um desses homens sem casa, não explica muito. Mas quando crescer um pouco há-de sentar-se com ele junto de um deles, que terá o mesmo ar desencantado da figura da sua infância, e vão conversar.

É o dia anterior ao da consoada. Enquanto os filhos continuam a espalhar brinquedos pela casa – mais brinquedos do que ela alguma vez poderia, em criança, ter sonhado –, Edília faz as malas para partirem para a aldeia onde nasceu e cresceu, no concelho da Guarda. Nada a demove de passar, na noite de 24, pelo adro da igreja da sua aldeia. Será como um presságio ver que a fogueira ainda arde.