Telemóveis fornecem mapas da densidade populacional portuguesa quase em tempo real

Bastaram registos anónimos de milhões de chamadas móveis para se conseguir cartografar as deslocações dos portugueses no dia-a-dia, ao fim-de-semana ou nas férias. A técnica poderá ser utilizada, por exemplo, em caso de urgência humanitária ou de catástrofe natural, em regiões do mundo onde não existem dados demográficos fiáveis ou actualizados.

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Catherine Linard/PÚBLICO
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A distribuição da população francesa nos meses de trabalho (a vermelho) e nas férias de Julho de Agosto (a verde) Cortesia de Catherine Linard
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A distribuição da população em Portugal e na região da Grande Lisboa mapeada com base no último censo (à esquerda), nas chamadas de telemóvel (ao centro) e nas imagens de satélite (à direita) Cortesia de Catherine Linard

As grandes cidades portuguesas esvaziam- se em Julho e Agosto, com toda a gente fugir para as praias – sobretudo as do Algarve. A maioria dos portugueses trabalha em meio urbano – e, ao fim-de-semana, muitos citadinos vão passear para o campo ou a serra. Uma equipa internacional de cientistas conseguiu visualizar estes movimentos populacionais, com uma resolução espacial e temporal sem precedentes, simplesmente com base em milhões de dados (anónimos) da actividade de utilizadores de telemóveis residentes em Portugal. Os seus resultados foram publicados recentemente na revista Proceedings of the National Academy of Sciences.

Saber onde estão as pessoas num dado território é muito importante – por exemplo em caso de catástrofe natural, de epidemia ou de conflito armado. Normalmente, a cartografia da densidade populacional é obtida a partir dos censos. Mas, para além de os censos nacionais serem caros e espaçados no tempo (em Portugal, faz-se um censo nacional de dez em dez anos), eles só fornecem uma imagem estática da distribuição da população.

E mais: ao passo que os países mais desenvolvidos realizam regularmente censos, há zonas inteiras do mundo onde as autoridades da protecção civil ou os responsáveis pela saúde pública locais não sabem ao certo quantos habitantes há e como se distribuem geograficamente. Nomeadamente em África, onde se situam alguns dos países mais pobres e portanto mais vulneráveis em situações de emergência humanitária.

É fácil perceber o quão difícil se torna, na ausência de dados de distribuição geográfica das populações, montar eficientemente o combate a epidemias como o ébola ou a malária em localidades remotas ou junto de comunidades isoladas – ou ainda a assistência alimentar ou sanitária aos refugiados vindos de zonas de conflito.

As imagens de detecção remota por satélite têm permitido melhorar muito o conhecimento desta “geografia” das populações humanas. Em particular, permitem distinguir zonas urbanas, rurais, montanhosas, desertas ou florestais, bem como, nas zonas construídas, os prédios altos, baixos, as moradias... Daí que, com base no censo, seja possível estimar a densidade da população em cada área com um maior nível de pormenor graças às imagens fornecidas por satélites.

Mas Andrew Tatem, da Universidade de Southampton (Reino Unido), juntamente com colegas da Bélgica, França, EUA e Suécia, quiseram saber se a informação de localização constantemente recolhida, em todo o mundo, pelas antenas que permitem a comunicação entre telemóveis poderia ser utilizada para obter este tipo de estimativas de forma mais económica, rápida e precisa.

Hoje em dia, fazem notar estes autores no seu artigo, a taxa de penetração dos telemóveis nos países desenvolvidos atinge os 121%. E nos países em desenvolvimento, a média é de 90% e continua aumentar. Mesmo em países como a República Democrática do Congo, onde o último censo remonta a 1984, 69% da população já tem telemóvel (embora possa aqui haver um certo nível de enviesamento em função da categoria socioeconómica das pessoas, admitem os cientistas).

Todavia, “a abordagem [via telemóveis] significaria uma melhoria substancial no conhecimento da distribuição da população naquele país”, escrevem. Entre não ter nenhuma informação fidedigna e saber onde estão os donos de telemóveis – que representam mais de dois terços da população –, a melhor opção parece clara.

Satélites ou antenas?
Para realizar o estudo, os cientistas utilizaram milhões de registos de chamadas móveis fornecidos por operadores de telecomunicações móveis de Portugal e França. “Em Portugal, tivemos acesso aos dados de dois milhões de utilizadores (cerca de 20% da população) e em Franca aos de 17 milhões de utilizadores (perto de 30% da população)”, disse ao PÚBLICO Catherine Linard, co-autora da Universidade Livre de Bruxelas (Bélgica). Porquê Portugal? “Escolhemos Portugal simplesmente porque tínhamos acesso a uma base de dados de chamadas e os dados do censo português são suficientemente precisos”, explica a cientista.

Os dados de recenseamento são necessários para calibrar os parâmetros do método que permite mapear a população a partir das chamadas móveis. E serão sempre necessários, salienta ainda, uma vez que os comportamentos ligados à utilização do telemóvel podem evoluir. “Precisamos deles nem que seja para conhecer o número total de habitantes” de um país.

O método dos telemóveis tem contudo uma clara vantagem em relação ao das imagens de satélite: é mais robusto quando não há dados de recenseamento, diz Catherine Linard. Claro que é sempre melhor dispor desses dados, mas mesmo quando eles não existem, consegue-se obter uma boa estimativa da população directamente a partir dos registos de chamadas e da taxa de penetração dos telemóveis. Algo que não é possível com o método da detecção remota, onde o cálculo das densidades populacionais só pode ser feito com base nos censos.

Voltando ao estudo, os dados de telemóveis utilizados pelos cientistas eram registos (tornados anónimos pelo operador) de chamadas efectuadas ao longo de vários meses em 2007 e 2008. “Cada vez que uma pessoa faz uma chamada, o seu telemóvel envia informação para uma antena receptora, fornecendo a sua localização aproximada”, explica Andrew Tatem em comunicado da sua universidade. “E quando essa informação é enviada múltiplas vezes por milhões de utilizadores, conseguimos dali extrair uma imagem detalhada da densidade da população e da sua variação ao longo do tempo numa dada área.”

Os cientistas também geraram mapas com base nos mais recentes censos de França e Portugal, cujos dados lhes foram fornecidos respectivamente pelo Instituto de Estatística e Estudos Económicos francês (INSEE) e pelo Instituto Nacional de Estatística português (INE). E constataram que os mapas de telefone móvel eram semelhantes aos mapas baseados nos censos. O novo método fornecia portanto resultados coerentes com a realidade.

Também compararam a qualidade dos mapas de telefone móvel à dos mapas obtidos a partir de dados de detecção remota por satélite. “Em geral, o método baseado nas imagens de satélite possui uma melhor resolução espacial, mas isso também varia de uma região para outra, porque a resolução espacial do método dos telemóveis depende da densidade das antenas”, explica ainda Catherine Linard.

“Nas zonas urbanas, essa densidade é alta e portanto a resolução dos telemóveis é melhor do que a das imagens de satélite e do que os dados de recenseamento. Mas nas zonas rurais, a resolução dos telemóveis é nitidamente inferior.”

Seja como for, a escalas pequenas e em zonas urbanas, a abordagem dos cientistas revelou-se poderosa em termos de resolução espacial. Vê-se isso muito bem na zona da grande Lisboa, por exemplo, quando se compara o mapa obtido à escala das freguesias a partir do censo português com o mapa obtido a partir dos dados de telefone móvel e dos de imagens por satélite (ver imagem).

“No nosso artigo, também evocamos a possibilidade de combinar os dois métodos (telemóveis e imagens de satélite) para optimizar os mapas”, frisa Catherine Linard.

Os mapas com base nos telemóveis apresentam porém uma vantagem única: não são estáticos e permitem revelar as variações ao longo do tempo da densidade da população de um país quase em tempo real.

“O mapeamento de populações [mesmo a partir de imagens de satélite] tem sido até aqui constrangido pela logística dos censos, que apenas fornecem um ‘instantâneo’ da distribuição populacional de dez em dez anos”, diz Andrew Tatem no já referido comunicado. “Pelo contrário, os registos anónimos das chamadas móveis podem ser examinados regularmente para mapear alterações diárias, semanais ou mensais à escala de todo um país, a menor custo e com maior flexibilidade.”

Quanto tempo demora um mapa a ser gerado? “Uma vez disponíveis os dados de telefone móvel, a produção dos mapas é muito rápida”, responde-nos Catherine Linard. “Podem ser obtidos em menos de uma hora.”

E foi desta forma que os cientistas conseguiram comparar as densidades de população em Portugal e França de dia e à noite, durante a semana e ao fim-de-semana, durante o Verão e o resto do ano – e daí deduzir os padrões temporais da demografia portuguesa que referimos no início deste texto.

Mapear o mundo
A equipa está neste momento a tentar estender o seu trabalho a regiões mais pobres, por exemplo para combater a malária na Namíbia, identificando as comunidades mais expostas à doença, lê-se no comunicado. E mais recentemente tem utilizado dados de telemóveis para ajudar as autoridades dos países de África Ocidental a prever o alastramento do vírus do ébola (quanto maior a densidade populacional, maior o risco de contágio).

“O método que testámos em França e Portugal poderia ser aplicado imediatamente a outros países europeus”, diz-nos Catherine Linard. Pelo contrário, noutros contextos (por exemplo, em África) é preciso fazer alguns ajustamentos. “Em particular, devemos ter em conta os enviesamentos socioeconómicos: uma região pobre poderá ser sub-representada devido à menor de penetração dos telemóveis. Também é preciso considerar as diferenças de comportamento dos utilizadores de telemóveis, que fazem com que, em certas regiões, os SMS sejam mais utilizados do que as chamadas de voz.”

A equipa já está em contacto com operadores de telemóveis na Namíbia, Senegal, Costa do Marfim e Quénia, que também lhes estão a fornecer dados para fins de investigação científica. Porém, ainda não foram feitos contactos com os organismos nacionais de protecção civil.

“Estamos actualmente a testar nosso o método na Namíbia – e eu diria que ele poderá estar operacional daqui a uns meses”, diz Catherine Linard.

O estudo também mostra, concluem os autores, que é possível utilizar dados vindos dos operadores de comunicações móveis “garantindo a privacidade dos utilizadores de telemóveis” – uma questão ética e de respeito das liberdades que tem constituído um obstáculo a este tipo de investigação. E escrevem que uma aplicação como esta, “com dados de telemóveis agregados e tornados anónimos”, tem o potencial de “fornecer, todos os meses, mapas exactos da distribuição da população em todos os países”.

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