Supressão de más memórias reduz o seu impacto a nível inconsciente

Desde Sigmund Freud que se pensa que as memórias reprimidas permanecem intactas no inconsciente, podendo afectar a seguir os comportamentos e a saúde mental. Um estudo põe agora em causa esta ideia.

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A persistência da memória, de Salvador Dalí (1931) DR

Nem todas as nossas recordações são para acarinhar. Pelo contrário, tudo fazemos para esquecer as mais traumáticas e desagradáveis. E de facto, em muitos casos até o conseguimos. Mas será que elas podem regressar, por via do inconsciente, para nos assombrar? A ideia, vigente há mais de um século, de que as memórias reprimidas permanecem intactas e fora do nosso controlo, podendo vir a ter um impacto negativo na nossa saúde mental, parece ser desmentida por um estudo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences.

Michael Anderson, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), e colegas pediram a um grupo de homens para suprimir voluntariamente certas memórias . Ao mesmo tempo, monitorizaram, graças à técnica de ressonância magnética funcional, os efeitos dessa supressão consciente sobre as diversas áreas do seu cérebro. E concluem que o facto de reprimir uma memória para a impedir de irromper na consciência também deteriora essa memória a nível inconsciente.

Como a maioria das pessoas que viveu uma experiência traumática se queixa de ser ulteriormente assaltada por imagens mentais indesejadas desse trauma, os cientistas fizeram a sua experiência com memórias visuais.

Começaram por treinar os participantes a associarem uma série de palavras e imagens – de forma a se lembrarem, de cada vez que uma das palavras era apresentada, do objecto visível na imagem correspondente, explica a universidade em comunicado.

Numa segunda fase, escrevem os cientistas no seu artigo, apresentaram aos mesmos participantes palavras que tinham aprendido a associar a objectos, pedindo-lhes para, segundo os casos, evocarem o objecto associado ou tentarem, pelo contrário, impedir que a imagem desse objecto surgisse na sua mente.

Tudo isto porque os autores queriam saber se a supressão voluntária da imagem mental de um objecto afectaria a capacidade ulterior de ver esses objectos – capacidade que escapa ao controlo consciente. Por isso, na terceira e última fase da experiência, tornaram a mostrar aos participantes as imagens apresentadas na fase inicial de associação imagem/palavra, pedindo-lhes agora para identificar os objectos representados. Só que, desta vez, as imagens originais surgiam distorcidas e fugazmente, dificultando a tarefa.

Ora, sabe-se que, nestas condições, as pessoas conseguem geralmente identificar melhor os objectos que viram recentemente, mesmo quando não se lembram de os ter visto, porque conservam na sua memória um “vestígio” inconsciente desses objectos. Mas não foi isso que aconteceu aqui.

Para além da consciência
De facto, os participantes tiveram uma maior dificuldade em identificar os objectos cuja memória tinham activamente reprimido na fase anterior do que os outros objectos. Ou seja, a “pegada” inconsciente das memórias suprimidas tinha sido afectada.

Os cientistas constataram ainda que a repressão activa da memória das imagens tinha inibido a actividade neuronal de certas áreas visuais do cérebro dos participantes, perturbando literalmente a sua capacidade de as ver. “Essencialmente, o facto de terem expulsado a imagem mental de um objecto estava a dificultar-lhes a visualização ulterior desse objecto no mundo real”, lê-se no comunicado.

“Os nossos resultados sugerem que os mecanismos de supressão activa das memórias, que já se sabia perturbarem a recordação consciente, também reduzem as expressões inconscientes da memória”, concluem os autores, acrescentando que deve ser possível desvendar os mecanismos desse processo neurobiológico – que aliás não se limita, especulam, apenas à memória visual.

“Embora tenha havido muitas pesquisas sobre como a supressão afecta a memória consciente, houve poucas a estudar a influência que este processo poderia ter nas expressões inconscientes da memória no comportamento e no pensamento”, diz Anderson. “E de facto, o que é supreendente é que os efeitos da supressão extravasam a memória consciente. (…) A influência da supressão das memórias vai para além das áreas cerebrais associadas à memória consciente, afectando também componentes perceptuais susceptíveis de nos influenciar de forma inconsciente.”

Os resultados poderão ter implicações no tratamento de estados patológicos como a síndrome pós-traumática, decorrentes de vivências muito difíceis de esquecer. “Quando se descontrolam, as nossas memórias podem causar perturbações psicológicas”, diz Pierre Gagnepain, co-autor da Universidade de Caen (França). “Queríamos saber se o cérebro das pessoas saudáveis conseguia genuinamente suprimir memórias, incluindo aos níveis mais inconscientes – e como o fazia. A resposta é afirmativa, embora nem toda a gente o faça de forma igualmente eficaz. Ao percebermos melhor os mecanismos neurais subjacentes a este processo, talvez possamos explicar melhor as diferenças de adaptação de cada um às memórias traumáticas.”

Quanto à ideia enunciada há mais de um século, “os nossos resultados põem em causa o que Freud afirmou acerca dos efeitos da supressão das memórias”, disse Anderson ao PÚBLICO. “Freud estipulou que quando as memórias eram banidas para o inconsciente pela repressão/supressão, permaneciam totalmente intactas e capazes de influenciar o comportamento. O nosso trabalho mostra que, na realidade, e ao contrário do que pensava Freud, a supressão de memórias indesejadas também perturba as suas influências inconscientes.”
 

   

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