Sexo, mulheres e testosterona: uma relação complexa

A testosterona parece desempenhar um papel importante nas relações amorosas de ambos os sexos. Mas nas mulheres, essa “equação” não é tão simples como nos homens. Cientista português pensa que isso acontece por razões psicológicas.

Foto
O beijo, de Gustav Klimt, óleo e folha de ouro sobre tela, 1907-1908 DR

A testosterona é por excelência a hormona do sexo, da virilidade e do desejo masculinos. E nas mulheres? Será que esta hormona, que elas também produzem – embora em quantidades muito inferiores aos homens –, nomeadamente ao nível dos ovários, também tem efeitos sobre a libido feminina?

A acção da testosterona no cérebro humano é tornar as pessoas mais atentas aos sinais sexuais – visuais, auditivos –, e mais geralmente, estimular a imaginação sexual. Por outro lado, uma das coisas que os especialistas têm vindo a perceber nas duas últimas décadas é que “as pessoas em relações monogâmicas estáveis [ou que cuidam dos filhos] têm níveis mais baixos de testosterona do que as pessoas sem – ou com múltiplos – relacionamentos sexuais”, disse ao Público Rui Costa, psicólogo experimental do ISPA – Instituto Universitário, em Lisboa.

Esta relação testosterona/relacionamento tem sido sobretudo testada nos homens – e ao que tudo indica, verifica-se no sexo masculino. Mas em paralelo, um número mais limitado de estudos em mulheres tem igualmente vindo a sugerir que existe uma relação semelhante no sexo feminino. Daí a pensar que quanto maior o nível de testosterona no sangue das mulheres, maior a apetência por sexo, vai um passo.

“A busca pelo ‘Viagra feminino’ despertou o interesse em estudar a relação entre a testosterona e o desejo sexual nas mulheres”, explica-nos Rui Costa, que trabalha precisamente nesta área fronteira da psicologia e da fisiologia. “E muito recentemente, a testosterona passou a ser muito procurada para tratar problemas de desejo sexual nas mulheres.”

Resultados equívocos
Só que, nas mulheres, essa relação testosterona-libido é bastante menos linear do que nos homens: “Nas mulheres, os resultados são equívocos”, acrescenta Rui Costa. Há mulheres em que a testosterona aumenta o desejo sexual e outras que não reagem ao tratamento. De onde vem essa discrepância? Rui Costa procura respostas.

Numa primeira fase, este cientista quis confirmar, desta vez em mulheres portuguesas, outros estudos já feitos na Noruega, nas Filipinas, nos EUA ou no Canadá. “Fui investigar se as mulheres que estão numa relação estável têm menos testosterona do que as mulheres sozinhas.” Com a sua equipa, acaba de publicar, numa recente edição da revista Personality and Individual Differences, o primeiro estudo deste tipo realizado em Portugal.

O trabalho envolveu 73 mulheres jovens (com 18 a 35 anos de idade). Metade dessas mulheres eram estudantes universitárias e metade empregadas de supermercado, “colegas da minha mestranda” e co-autora Mónica Correia, que lá trabalhava em part-time, salienta Rui Costa.

Os níveis de testosterona das participantes foram medidos através de amostras de saliva. E globalmente, os resultados confirmam o que já se pensava: níveis mais elevados de testosterona surgem associados a níveis inferiores de envolvimento romântico exclusivo – e portanto, em princípio, a uma maior disponibilidade sexual.

Diga-se antes de mais que, embora uma relação deste tipo possa existir em ambos os sexos, a causa e o efeito parecem inverter-se dos homens para as mulheres. Assim, nas mulheres, será a relação monogâmica a induzir uma redução da testosterona em circulação no organismo – ao passo que os homens “têm de ter um nível baixo de testosterona à partida [dentro da normalidade, claro] para entrarem mais facilmente numa relação monogâmica”, explica Rui Costa. “Tem havido alguma investigação que sugere que, no caso das mulheres, a relação sentimental é mais a causa e o nível baixo de testosterona o efeito”, acrescenta.  “Tenciono aprofundar esta questão.”

Voltando ao estudo agora publicado, a equipa portuguesa quis ir mais longe do que os estudos anteriores, ao incluir uma variável adicional nesta “equação” – uma variável de ordem psicológica e não fisiológica como o nível de testosterona. Mais precisamente, os cientistas quiseram saber se, em presença de um de dois traços da personalidade (extroversão e procura de sensações) que tornam as pessoas mais atentas aos estímulos sexuais, os níveis de testosterona nas mulheres deixariam de ser, por assim dizer, um indicador da sua situação sentimental.

“A extroversão e a procura de sensações são dois traços da personalidade que, estatisticamente, tornam uma pessoa mais propensa ao sexo casual – e a procura de sensações tem sido por vezes associada à infidelidade”, diz Rui Costa. “E a minha hipótese de partida era que, nas mulheres mais extrovertidas [ou mais propensas a procurar sensações], não haveria diferenças de níveis de testosterona conforme elas tivessem ou não um parceiro estável. Decidi ir ver se esta relação [testosterona/relacionamento] era moderada pela propensão ao sexo casual” das mulheres.

Para isso, a equipa pediu às participantes para preencher questionários especificamente destinados a avaliar esses dois traços da personalidade. Resultado: nas mulheres que apresentavam esses traços de forma mais pronunciada, os níveis de testosterona já não eram um indicador da situação relacional.

Reconhecer as emoções
Rui Costa já passou para a fase seguinte do seu trabalho: determinar o que faz com que certas mulheres com perturbações do desejo sexual respondam positivamente à testosterona e outras não. “Estou agora a investigar quais são os traços da personalidade que explicam a correlação observada entre os níveis de testosterona e a libido”, explicou-nos ainda.

Como se trata, segundo ele, de traços associados a “uma boa capacidade de reconhecer as suas próprias emoções”, o investigador está a estudar precisamente um traço que surte o efeito oposto – ou seja, que conduz a uma incapacidade de reconhecer essas emoções.

Em termos médicos, este tipo de perturbações é conhecido por “alexitimia”. Ora, mesmo sem atingirem níveis patológicos, salienta Rui Costa, muitas pessoas apresentam níveis de maior ou menor alexitimia. E as pessoas alexitímicas costumam ter um desejo sexual muito baixo.

É por isso que, argumenta o cientista, perturbações como a alexitimia poderão explicar o défice de desejo sexual observado em parte das mulheres, independentemente dos seus níveis de testosterona. “É muito plausível que nas pessoas muito alexitímicas não exista uma correlação entre os níveis de testosterona e a libido”, frisa o investigador.

Esta série de experiências, também com voluntárias jovens, tem consistido na medição dos níveis de testosterona antes e depois da apresentação às participantes de dois tipos de “estímulos” que suscitam pensamentos de ordem sexual: um questionário online e excertos de filmes românticos. No questionário, é-lhes pedido para descreverem uma fantasia sexual em torno de um parceiro imaginário.

“Estou interessado no estudo dos problemas sexuais na população jovem”, refere ainda Rui Costa. “Estudos psicológicos indicam que 10 a 20 % dos jovens sofrem de falta de desejo sexual.” Ora, pouca atenção é dada a esta população, quando precisamente os jovens “têm mais vergonha de consultar um médico do que as pessoas mais velhas”, frisa.

Este trabalho ainda está em curso, mas Rui Costa diz-nos que os resultados que obteve até aqui já lhe permitem concluir que, efectivamente, “a alexitimia explica a discordância observada [nas mulheres] entre os níveis de testosterona e a libido”. E acrescenta: “Constatei que nas participantes mais alexitímicas essa discordância é maior do que nas menos alexitímicas. E confirmei que pode haver dois tipos de situações: testosterona alta e libido baixa e testosterona baixa e libido alta.” Rui Costa, que pensa que no cerne do problema está essa dificuldade em sentir as emoções, também estuda, para além da alexitimia, outras situações em que essa dificuldade se manifesta, como por exemplo quando existem mecanismos de defesa psicológicos que bloqueiam os pensamentos desagradáveis e, ao mesmo tempo, a capacidade de sentir as próprias emoções.

Estes resultados poderão ter implicações importantes em termos do tratamento da falta de desejo sexual, diz-nos ainda Rui Costa. “Se for possível explicar por que há pessoas com um nível de libido baixo apesar de terem níveis de testosterona normais – e que a causa reside na dificuldade em sentirem as suas próprias emoções –, o problema da falta de libido poderá então ser abordado através da psicologia.”

Acontece que, ultimamente, o tratamento dos problemas do desejo sexual nas mulheres tem sido muito baseado na medicação, diz Rui Costa. Mas a confirmar-se a sua teoria, o investigador acha que os clínicos poderão então avaliar a personalidade das pacientes, antes de lhes prescreverem testosterona, para determinar se uma abordagem não puramente médica, mas psicológica, não seria mais eficaz.

“Há estudos que mostram que, nas mulheres, a meditação de tipo mindfulness, que treina a pessoa a sentir as suas emoções sem fazer juízos de valor, tem tido resultados positivos, aumentando o desejo sexual”, conclui.

Sugerir correcção
Ler 4 comentários