Sequenciado o mais antigo ADN humano de sempre

Pela primeira vez, foi possível “ler” material genético humano com cerca de 400 mil anos de idade. Os resultados obtidos são, no mínimo, inesperados, uma vez que genes e fósseis parecem contar histórias diferentes — e vêm assim complicar mais um pouco a visão que os especialistas tinham da nossa evolução.

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Reconstituição artística dos homens primitivos da gruta de Sima de los Huesos, em Espanha Javier Trueba/MADRID SCIENTIFIC FILMS

Uma conhecida equipa de paleogeneticistas conseguiu empurrar para trás no tempo, de forma espectacular, os limites das técnicas de extracção e sequenciação do ADN vindo de restos fósseis de humanos primitivos. Os resultados são publicados na revista Nature de quinta-feira.

Até aqui, o mais antigo material genético humano sequenciado – pelos mesmos cientistas – era o dos neandertais, espécie “prima” da nossa, hoje extinta, que viveu na Europa até há uns 30 mil anos; e o dos denisovanos, outros humanos primitivos, também extintos mas mais misteriosos, pois só se conhecem deles dois dentes e a ponta de um dedo. Os escassos restos fósseis dos denisovanos, contemporâneos dos neandertais e com quem misturaram, aliás, os seus genes, provêm da gruta Denisova, na Sibéria.

Svante Pääbo, do Instituto Max Planck de Leipzig (Alemanha), e os seus colegas já tinham conseguido, com técnicas por eles desenvolvidas, extrair e ler na íntegra os genomas destes humanos arcaicos.

Mas agora deram um imenso salto temporal no estudo da genética da evolução humana. “Conseguimos ler material genético cinco a dez vezes mais antigo do que o que analisámos antes”, disse Pääbo à Nature.

Ainda não foi possível lerem todo o ADN do homem primitivo que viveu há centenas de milhares de anos numa gruta em Espanha – e, de facto, vão demorar algum tempo a afinar as técnicas para o conseguir fazer. Mas conseguiram, isso sim, decifrar o ADN mitocondrial dessa remota espécie de humanos. O ADN mitocondrial é um bocadinho de ADN transmitido por via materna e contido nas mitocôndrias (as baterias das células). E como cada célula possui centenas de mitocôndrias, esse ADN é muito mais abundante do que o resto do material genético (o chamado "ADN nuclear"), o que facilita a sua extracção e análise. Seja como for, há apenas uns anos, com fósseis desta idade, esta última façanha da equipa de Leipzig teria sido impossível.

Os cientistas extraíram o ADN de uma ínfima quantidade de pó de osso – (1,95 gramas apenas) colhido furando um fémur humano com perto de 400 mil anos, descoberto nos anos 1990 na gruta de Sima de Los Huesos (Espanha), um local que contém “a maior colecção do mundo de fósseis de homens primitivos do Pleistoceno Médio”, escrevem. Este local tem sido escavado, ao longo de mais de duas décadas, pela equipa de Juan-Luis Arsuaga, da Universidade Complutense de Madrid, que também assina os resultados.

Pensa-se que o fémur pertenceu a um indivíduo da espécie Homo heidelbergensis, um homem primitivo com alguns traços distintivos de tipo Neandertal ao nível da morfologia dos dentes, da mandíbula, da face. Por isso, a ideia mais aceite é que os homens de Sima de los Huesos são, provavelmente, antepassados directos dos neandertais, explica Pääbo.

Como se não bastasse terem batido – e de longe – o recorde temporal na análise de um ADN humano fóssil, a sequenciação quase completa do ADN mitocondrial deste antiquíssimo osso escondia uma grande surpresa genética, revelada quando os cientistas compararam esse ADN com o dos neandertais, denisovanos, grandes símios e humanos modernos. É que, ao contrário do que era de esperar, o ADN mitocondrial do homem da gruta espanhola revelou ser mais próximo do ADN mitocondrial dos asiáticos denisovanos do que do dos europeus neandertais. “O facto de o ADN mitocondrial do homem primitivo de Sima de los Huesos partilhar um antepassado comum com os denisovanos e não com os neandertais é inesperado, uma vez que o seu esqueleto apresenta características derivadas dos neandertais”, diz Matthias Meyer, autor principal do estudo, citado em comunicado do Instituto Max Planck.

Claro que isso não significa que os denisovanos não tenham tido características semelhantes às dos neandertais, uma vez que pouco se sabe do seu aspecto físico. “Não sabemos quase nada sobre a aparência dos denisovanos”, frisa Pääbo. “Só temos o seu genoma e uns dentes enormes. Podemos apenas dizer que deviam ter bocas muito grandes – e, provavelmente, corpos muito grandes.” Para mais, nas últimas semanas, o mistério em torno dos denisovanos adensou-se, com a descoberta de que o seu genoma contém vestígios de uma espécie de humanos arcaicos ainda não identificada...

“O nosso resultado levanta mais perguntas do que as que resolve”, diz ainda Pääbo, “porque sugere uma ligação entre os homens primitivos da Europa e da Ásia.”

Existem vários cenários susceptíveis de explicar o enigma, que os cientistas descrevem no seu artigo. Um deles é que os homens de Sima de los Huesos poderão ser parentes próximos dos antepassados dos denisovanos. Porém, “esta hipótese é remota”, escrevem, “porque a presença dos denisovanos na Europa Ocidental indicaria uma extensa sobreposição espacial com os antepassados dos neandertais, levantando a questão de saber como é que estes dois grupos conseguiram divergir geneticamente enquanto coexistiam no mesmo território”. De qualquer das formas, acrescentam, “o espécime de Sima de los Huesos é tão velho que é provavelmente anterior à divergência entre denisovanos e neandertais”.

Uma outra possibilidade é que o grupo de Sima de los Huesos seja diferente tanto dos neandertais como dos denisovanos – mas que, a certa altura, tenha contribuído para o ADN mitocondrial dos denisovanos. Porém, isso também não convence os autores, uma vez que “implicaria a emergência, de forma independente, de várias características morfológicas de tipo Neandertal num grupo não relacionado com os  neandertais”. Um terceiro cenário ainda seria que os homens da gruta espanhola estivessem relacionados com o antepassado comum aos neandertais e aos denisovanos. Um cenário “plausível, mas que requer uma explicação para a presença de duas linhagens totalmente divergentes de ADN mitocondrial num mesmo grupo arcaico, uma das quais ressurgiu a seguir nos denisovanos, enquanto a outra se fixou nos neandertais”, lê-se na Nature.

Por último, os cientistas especulam que “um fluxo de genes, vindos de uma outra população de humanos primitivos, poderá ter introduzido ADN mitocondrial parecido com o dos denisovanos na população de Sima de los Huesos ou nos seus antepassados” – e que, ao mesmo tempo, o mesmo grupo arcaico também poderá ter contribuído, com o seu ADN mitocondrial, para os genes dos denisovanos na Ásia. “Estamos tão perto no tempo da população ancestral comum a todos estes indivíduos que é possível que essa população ancestral tenha misturado os seus genes com uma população ainda mais antiga, como o Homo erectus, e tenha herdado dela o seu ADN mitocondrial”, salienta Pääbo.

Uma coisa é certa, concluem os autores: para conseguir desemaranhar esta parte da evolução humana, vão ter de sequenciar todo o ADN do núcleo dos antigos habitantes de Sima de los Huesos. “A derradeira resposta está no ADN nuclear, que irá permitir ver se os homens de Sima de los Huesos são parentes mais próximos dos neandertais, dos denisovanos ou dos homens modernos”, diz Pääbo. "Espero que dentro de um ano ou pouco mais tenhamos suficiente ADN nuclear para responder a estas perguntas.” Há 28 esqueletos em Sima de los Huesos e algum deles há-de acabar por mostrar o seu ADN...
 
 
 
 

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