Robôs dissidentes? Rádio livre no Uganda? Esta tecnologia social veio da Madeira

E se os Indignados tivessem um robô-manifestante? A pergunta faz parte de um esforço para repensar o uso da tecnologia e responder a problemas sociais e ambientais. Este é o contra-ataque de uma região da periferia.

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Chris Csikszentmihályi a subir à antena de uma das rádios no Uganda DR

Os dois robôs-manifestantes expostos numa sala do Instituto de Tecnologias Interactivas da Madeira (M-ITI, sigla com que o instituto se identifica), no Funchal, causam uma reacção entre desconforto e divertimento, estranheza e fascínio. São uma ideia nascida da mente do investigador norte-americano Christopher Csikszentmihályi. Em vez de uma cabeça, têm um megafone preso a uma estrutura de madeira — vestida com um casaco com capuz que dá aos robôs um ar contemporâneo —, e duas rodas. Para que serve o megafone?

“Para entoar cânticos”, disse-nos Chris Csikszentmihályi, formado em estudos artísticos, que foi professor no Instituto de Tecnologia do Massachusetts (MIT), EUA. “Queremos usá-los para protestar junto das grandes empresas que fabricam equipamento militar e estão a construir robôs para reforçar o poder estatal. Queremos enviar sinais de modem para tentar convencer os robôs dentro das fábricas a largarem os tasers e a agarrarem nas enxadas...”

Esta não é a conversa habitual tida num laboratório. Mas o M-ITI, ligado à Universidade da Madeira, não é um instituto como os outros. Tem cientistas formados em engenharia, design, arquitectura, sociologia, antropologia, física e as pessoas juntam-se ao redor de ideias.

Um dos projectos de Chris Csikszentmihályi é no Uganda, onde está a instalar rádios com equipamento barato. O objectivo? Pôr as pessoas a conversar, a trocar ideias e a resolver os problemas da comunidade.

Este tipo de abordagem é a resposta do instituto às transformações contemporâneas.

“Que sociedade é esta em que a tecnologia informática nos permite orientar dentro de um centro comercial, mas nos deixa perder um avião no oceano? Ou de não sermos capazes de perceber as consequências do aquecimento global?”, indagou-se Nuno Nunes, presidente do M-ITI. “A tecnologia informática teve um impacto tremendo nos últimos 30 anos. A nossa sociedade mudou completamente. Mas foi para melhor?”

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Um robô-manifestante no corredor do M-ITI DR

A Uber, uma empresa de serviço de táxis que tem uma aplicação de telemóvel, é um representante de “fenómenos interessantes, que permitem a partilha de recursos quando não temos”, mas que “estão a reverter sistemas sociais, os empregos de pessoas”, disse. “O que estamos a fazer no instituto é pensar como a tecnologia vai permitir criar um mundo melhor. Achámos que o Chris era a pessoa certa para essa visão crítica.”

Preocupação ontológica

Em Abril, quando o comissário europeu Carlos Moedas foi à Madeira, o cientista norte-americano foi uma das pessoas que falou sobre o M-ITI. Usou a lei de Moore para enunciar uma preocupação ontológica.

Em 1965, o engenheiro norte-americano Gordon Moore previu a duplicação anual de transístores nos circuitos integrados de silício. Ainda hoje se discute até quando será possível manter esse ritmo. Mas para Chris Csikszentmihályi, essa lei traduz um problema antigo da engenharia. “Como o seu poder é apoiado na ciência, a engenharia é frequentemente confundida com ciência. Os engenheiros adoram isso. Porque podem fingir que o que estão a fazer é como o mundo natural”, disse o cientista.

Porém, ao contrário da lei da gravidade, que descreve um fenómeno natural, não há nada de natural na duplicação de transístores. “A lei de Moore não passa de uma lei de uma data de engenheiros, de estratégias de negócio, em que as empresas, para serem competitivas, fazem tudo para criar progresso. Mas não há nada do mundo natural aí.” Estamos a falar de um processo humano, tal como a governação dos países ou a economia, que foram objecto de mudanças ao longo dos séculos para lidarem com problemas das sociedades. Mas a tecnologia permanece sagrada, segundo o investigador.

“De alguma forma, ainda não temos um processo democrático para a tecnologia”, disse. “Os meus colegas no MIT costumavam rir-se da ideia de que a tecnologia é política. Diziam: ‘Não, o meu trabalho é apenas sobre o mundo natural.’ Mas se olharmos para o MIT, 80% do seu financiamento vem do Governo dos EUA, e 80% desse financiamento provém do Departamento de Defesa. Por isso, o MIT é um agente do poder estatal norte-americano e toda a sua investigação é influenciada por isso.”

Das torradeiras solidárias...

Essa é uma das razões porque o investigador está hoje no M-ITI, numa ilha portuguesa: “Este é um grupo de engenharia que, pelo menos, está aberto à ideia de que é possível haver um outro tipo de tecnologia.”

Para explicar uma das abordagens de reflexão sobre a tecnologia, o investigador usa como exemplo uma torradeira. “Torra pão. Mas também usa energia que causa o aquecimento global e a sua produção polui.”

Uma forma de reduzir esses efeitos secundários é com regulamentação, muitas vezes aplicada já com a tecnologia no mercado. Mas Chris Csikszentmihályi quer pensar em tudo desde o início. E quando se discutem os efeitos negativos, é possível pensar em formas de ajudar a sociedade.

De repente, uma torradeira deixa de ser só um aparelho que torra pão. “Por que não pensar como ela pode ajudar nas questões discutidas pelo movimento Indignados [nascido em Espanha no 15 de Maio de 2011]? Como é que uma torradeira pode ajudar a evitar a austeridade e a pobreza?”, provocou. “Estamos agora a olhar para o movimento de solidariedade que está a vir da Grécia. Se eu estivesse a construir uma aplicação como o Ebay, seria possível incorporar algum conhecimento desse movimento?”

Voltando aos robôs-manifestantes, Chris Csikszentmihályi quis virar as coisas do avesso. Em vez de drones que lançam bombas, como o famoso Predador dos EUA, ou de robôs de vigilância, por que não inventar algo para os Indignados? Como um robô que vá para as manifestações, que esteja nas greves, que seja “um corpo no espaço público, um dos elementos mais importantes no repertório de dissidência”, lembrou o cientista.

Desde 2001 que ele trabalha nesta visão. A seguir ao 11 de Setembro, Chris Csikszentmihályi, então no MIT, imaginou um robô-jornalista de guerra. Chamou-lhe Explorador Afegão: “Ainda não tínhamos invadido o Afeganistão. Mas eu previa que isso ia acontecer. E sabia que tanto os taliban como o Pentágono odiavam a comunicação social e iria ser muito difícil obter informação sobre a guerra.”

O Explorador Afegão custou 9000 euros ao MIT. Alimentado a luz solar e com um ecrã no lugar da cabeça, era um carrinho guiado por satélite e “fazia” entrevistas.

Os jornalistas não ficaram lá muito contentes. “Disseram que o robô nunca poderia fazer jornalismo como devia ser. Concordo completamente”, considerou Chris Csikszentmihályi.

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O robô-jornalista serviu para mostrar como máquinas como drones a lançar bombas podem ser ineficazes nos seus propósitos DR

Era uma provocação do investigador, que também prevê que os robôs-manifestantes causem a mesma decepção. “Vamos pôr os Indignados a controlá-los. Vão ficar tremendamente desapontados. É quase impossível fazer piquetes de greve com eles.”

Este tipo de dissabores é útil, acrescentou, uma vez que ajudará a compreender o mau uso da tecnologia, como os drones de guerra. Mas não são eles eficazes?

“O Predador é eficaz a matar quando se vê de longe. Mas não é eficaz numa guerra. A maioria das pessoas mortas não era o alvo. Isto é combustível para o ISIS e a Al Shabaab e está a criar um futuro terrível. Como é que se pode dizer que estas coisas são eficazes?! Só se for para vender mais e enriquecer algumas pessoas.”

Em 2014, o jornal The Guardian trazia uma aritmética interessante feita por um grupo de direitos humanos: na tentativa de liquidar 41 homens, os ataques de drones dos EUA mataram 1147 pessoas, em países como o Paquistão e o Iémen.

Ao verem o robô-repórter, os jornalistas estabeleceram a ligação entre a ineficácia deste “jornalista” e a dos drones como máquinas de guerra “e deixaram de acreditar na história contada pelos militares” sobre essa eficiência, disse o investigador. Todas estas suas criações têm um objectivo: “Expandem o espaço do que achamos apropriado para o uso da tecnologia, ao mesmo tempo que nos obrigam a questionar o seu uso actual.”

A discussão é premente, se olharmos para os últimos anos onde esse “futuro terrível” é o aqui e agora. Basta pensar nos ataques terroristas em Istambul, em Ancara, em Paris, em Bruxelas, em Orlando. Na semana passada, em Nice. Nas milhares de pessoas que morrem a atravessar mares e fronteiras para viverem na Europa. Nas cidades destruídas da Síria e do Iraque. Nos muros que são erguidos, de Israel à Hungria.

E a Madeira, região ultraperiférica que nos últimos anos teve das mais altas taxas de desemprego do país, pode ajudar a pensar na origem desses fenómenos: as migrações, as alterações climáticas que estão a pôr territórios sob pressão, ou a abundância da tecnologia em populações sem emprego e sem esperança.

“As alterações climáticas acontecem mais em sítios como a Madeira, e as migrações mais em sítios como a Madeira e o Mediterrâneo. Estamos mais próximos das questões que afectam a Europa”, disse Nuno Nunes, frisando a importância da investigação vinda da periferia. “Em Bruxelas, as pessoas preocupam-se quando há um ataque terrorista, mas não percebem que esse ataque foi provocado pela falta de capacidade de resolver os problemas na periferia da Europa. Resolvê-los é o quê? É trazer uma paranóia securitária para o centro?”

... A uma inovação do Sul

O M-ITI tem cerca de 100 pessoas, entre investigadores e alunos de doutoramento de 12 nacionalidades, e um orçamento de 1,4 milhões de euros em 2015. Não se dedica a inventar tecnologia, mas a usar a que existe criando conceitos novos. Há um grupo dedicado à área de neuro-reabilitação, há trabalhos que alertam sobre o consumo de combustíveis fósseis...

“Há interesse pelas questões ligadas ao Sul, a África, onde grande parte da inovação está a acontecer. E não é chegar e tentar impor a tecnologia ocidental, o projecto do Chris [sobre a rádio no Uganda] é um exemplo disso”, frisou Nuno Nunes.

Esse projecto — o Rootio, de Grassroots Community Input and Output — iniciou-se em 2013, graças à colaboração do investigador norte-americano com o engenheiro de telecomunicações ugandês Jude Mukundane.

“O Uganda tem 33 milhões de pessoas, há apenas cerca de 100.000 exemplares de jornais todas as semanas. É pouco provável alguém ler um jornal. A rádio é o meio de comunicação dominante”, contou Chris Csikszentmihályi. Com dinheiro da Fundação Knight (EUA), o norte-americano e o ugandês usaram a Internet e os telemóveis e instalaram rádios em quatro comunidades do país.

O kit para a rádio consiste num balde de plástico com um smartphone de 70 euros, um transmissor FM de 200 euros, além de um painel solar, uma bateria e a antena. “Construímos estações de rádio de 12.000 euros para comunidades de 2000 a 10.000 pessoas”, resumiu.

No Uganda, o uso dos telemóveis é parcimonioso. Costumam estar desligados. As pessoas carregam-nos com dinheiro e ligam-nos só para fazer uma chamada.

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O balde com o kit para montar a rádio DR

Esta dinâmica foi aproveitada para a rádio. Quando há programas abertos ao público, qualquer pessoa pode telefonar para a rádio. Mas ninguém atende. O smartphone da rádio toca três vezes e desliga-se. De seguida, quem telefonou recebe uma chamada da rádio através da computação em “nuvem” (que é muito barata), e pode fazer a sua intervenção sem ter de pagar nada.

Por outro lado, ouvir música ou outros programas também é fácil: esses programas estão guardados na “nuvem” e basta alguém da rádio ir lá buscá-los através do smartphone e difundi-los pelo transmissor FM.

Um exemplo: “O responsável regional [do Governo] fala num programa de temas importantes para o Ministério da Agricultura. Depois, o programa é aberto à comunidade para perguntas. O que devo plantar este ano? Que doença é esta? Que dinheiro devo pedir a alguém que vem comprar o meu milho e o vai vender à cidade?”, referiu Chris Csikszentmihályi. “O responsável também fica a saber o que se passa. Quando recebe uma chamada sobre a doença do mosaico na mandioca, pode ir explicar às pessoas que não devem partilhar estacas, porque vão espalhar a doença.” 

As quatro rádios foram para o ar em Agosto de 2015. O investigador quer expandir o projecto para milhares de comunidades. A ideia é convencer quem tem algum dinheiro, como os donos de um restaurante, a comprar o equipamento necessário para instalar a rádio. A África do Sul, o Quénia e o Sudão do Sul estão também interessados no Rootio. 

Para o investigador, o objectivo final é pôr as pessoas a falar para “definir o futuro da comunidade, resolver os seus problemas, partilhar ideias, em vez de receberem comunicados sem fim do Governo e de ONG”.

Tudo isto à base de uma tecnologia simples e de ver as necessidades das comunidades. Por isso, Chris Csikszentmihályi define o Rootio como um projecto técnico-social: “A separação entre o social e o técnico é uma construção da modernidade. Levou a coisas incríveis, mas temos que nos questionar: a tecnologia não teria avançado na mesma, sem a separação entre a parte social e a técnica? Será que teríamos tido o aquecimento global? Pagámos um preço terrível com esta separação e algumas tecnologias são terríveis por perpetuarem esta situação.”

O PÚBLICO viajou a convite da Comissão Europeia

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