Para atacar a precariedade científica Manuel Heitor quer contratos a prazo

Ministro da Ciência volta a reunir-se na sexta-feira com sindicatos para discutir contratos de trabalho para investigadores doutorados. A proposta tem quatro níveis salariais.

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Muitos cientistas em Portugal vivem de bolsas de investigação consecutivas Daniel Rocha

A “dignificação do emprego científico” foi a expressão usada pelo ministro da Ciência, Manuel Heitor, num encontro com cientistas no Instituto de Ciências Sociais (ICS) segunda-feira em Lisboa ao fim da tarde, para apresentar a nova proposta de contratação de doutorados. Mas houve quem dissesse que agora há o risco de uma carreira paralela precária pela sucessão de contratos a prazo.

Organizada pela Rede de Investigadores Contra a Precariedade Científica, a reunião tinha como objectivo discutir a proposta de legislação do Governo para o “novo regime de contratação de doutorados destinado a estimular o emprego científico”, segundo o documento. O objectivo da lei, cuja proposta já foi aprovada em Conselho de Ministros e está numa fase de discussão com sindicatos, é pôr fim ao regime profissional de milhares de investigadores doutorados que vivem de bolsas de investigação. A proposta abre a porta para a contratação destes profissionais, que passariam a ter as condições básicas de qualquer outro trabalhador como o pagamento dos impostos, o 13º e 14º meses de salário e acesso ao subsídio de desemprego.

Apesar de a mudança ser bem-vinda, assim como a abertura de Manuel Heitor para discutir a proposta frente a frente com cientistas, havia desconforto na sala. O decreto, tal como está, define apenas contratos temporários e contratos a termo incerto, não fazendo a ligação com a carreira de investigador da administração pública. Além disso, a proposta não faz referência a contratos a tempo indeterminado — um regime que evitaria que os investigadores estivessem ciclicamente à beira do desemprego, sempre que contratos ou bolsas terminam. Este sistema, que em muitos casos dura mais de uma década, não acontece na maioria das profissões onde os trabalhadores acabam por entrar no quadro.

Com o novo decreto, “corre-se o risco de institucionalizar uma carreira paralela precária pela sucessão de contratos de seis anos em categorias diferentes, sem haver a absorção destes investigadores por parte das instituições”, disse ao PÚBLICO Paulo Granjo, antropólogo do ICS e um dos coordenadores da rede. “O senhor ministro sabe melhor do que ninguém que são necessárias mais pessoas no trabalho científico e tecnológico para a dinamização económica e sustentabilidade do país.”

Uma “boa intenção”

Na reunião, Manuel Heitor foi taxativo. “Não estamos a tratar da carreira de investigação científica, mas de regimes de contratação no tempo, que seguem a lei geral do trabalho e têm um limite máximo de seis anos”, disse. “Isto resolve o problema de milhares de bolseiros sem contratos.”

Segundo o ministro, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) vai abrir anualmente concursos para estes novos contratos. Este será também um aspecto a ter em conta na avaliação das unidades de investigação que se iniciará em 2017. “Uma unidade para ser muito boa ou excelente tem que ter um quadro de dignificação do emprego científico”, referiu, considerando que esta será uma forma de estimular a contratação de doutorados no novo regime.

“A boa intenção do ministro acaba por ser minada por esta proposta”, disse ao PÚBLICO Gonçalo Leite Velho, professor no Instituto Politécnico de Tomar e presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior (Snesup), que volta a reunir-se na sexta-feira, numa segunda ronda, com Manuel Heitor. Para o Snesup, um dos problemas da proposta são os contratos de trabalho a termo incerto paras as universidades que são fundações e para o sector privado. “Na legislação geral, o contrato a termo incerto está previsto no caso de uma substituição temporária [de um trabalhador]. Aqui é a norma. Estas pessoas a qualquer momento podem ser despedidas”, referiu Gonçalo Leite Velho. 

Manuel Heitor relativiza esta questão. “Isso é uma mera questão jurídica. Quisemos dar todas as possibilidades”, afirmou ao PÚBLICO.

“Sem dinheiro não há palhaços”

Mas há mais: o Snesup critica a tabela de remuneração apresentada na proposta, com quatro níveis remuneratórios, cujos limites mínimos e máximos são amplos (por exemplo, a remuneração bruta mensal de “nível 2” vai de 2334 a 3158 euros). Para Gonçalo Leite Velho, os critérios para aplicar o nível remuneratório a cada investigador são vagos, argumentando que a entidade empregadora poderá assim pagar o menos possível.

Por outro lado, o sindicalista não compreende como é que se pode separar esta nova legislação do regime de carreira de investigação científica. “Qualquer contrato que existe na administração pública está ligado a um quadro remuneratório e a um quadro de carreira. As duas questões têm de estar [obrigatoriamente] ligadas”, sublinhou o investigador, lembrando as declarações de Manuel Heitor ao PÚBLICO em Fevereiro, quando anunciou que queria “flexibilizar” o emprego científico. “A actual proposta é mais uma flexibilização do emprego científico do que a resolução a longo prazo do emprego científico.”

Na reunião, o ministro lembrou que no final de 2015 a autorização dada pelo Governo às universidades para a contratação de investigadores foi um sinal para as instituições científicas os integrarem.

Mas Paulo Granjo pôs o dedo na ferida. “Sem dinheiro não há palhaços”, disse. “Não se pode mandar para as costas das instituições responsabilidades, se não lhes são fornecidas condições financeiras mínimas para as cumprir.” 

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