Os inimigos aqui tão perto

Enquanto a sra. Merkel manifesta, na sua gestão política, um grande respeito pelo Tribunal Constitucional alemão, evitando tomar decisões que possam ir contra as normas constitucionais, por cá faz-se exactamente o contrário.

O estado calamitoso a que chegou o que até há pouco se chamava União Europeia e que agora se designa tristemente de Europa porque de união nada tem, deixa qualquer pessoa minimamente informada à beira de um ataque de nervos. A cada reunião de dirigentes europeus sucedem-se anúncios de decisões que são alteradas nos dias seguintes, promessas de favores segredadas por ministros de países ricos a ministros de países pobres, afirmações em conferências de imprensa que também virão a ser desmentidas. Como se isto não bastasse, chegou-se ao ponto de decidir taxar os depósitos dos bancos de Chipre abaixo dos cem mil euros, em violação das regras definidas pelas próprias instituições europeias. Uma decisão tomada, ao que parece, por unanimidade e que vigorou por escassas horas.

Perante a passividade dos parceiros europeus e das próprias instituições europeias, a Alemanha tem conseguido subordinar a gestão da crise ao seu calendário eleitoral e à sua agenda interna, complementando cada decisão punitiva e desfavorável aos países em situação económica difícil com os comentários indecorosos do seu ministro das Finanças que desconhece todo e qualquer preceito de diplomacia internacional.

Esta posição dominante que perverte o próprio projecto europeu em cuja construção a Alemanha tanto se empenhou, suscita da parte das opiniões públicas dos outros países legítimas reacções de repúdio. Mas não pode justificar a associação da líder alemã a Hitler, nem do poder actual do Governo alemão ao do nazismo. Este regime não foi um acontecimento banal e permanece até hoje um fenómeno único na história da humanidade, na sua capacidade de destruição, na organização política e industrial da morte, na dimensão de horror e bestialidade que atingiu.

Como dizia Michel Foucault, o poder exprime-se numa relação e não está localizado nem constitui um atributo dos dominantes. Para ser eficaz precisa que os dominados se identifiquem com ele, lhe confiram sentido e internalizem as práticas que garantem a reprodução da dominação. Nada mais evidente na situação que actualmente se vive na Europa. Quem foi que propôs a taxação dos depósitos abaixo de cem mil euros, no Chipre, senão o próprio Presidente cipriota, aparentemente para não penalizar demasiado os grandes depositantes a quem ele se sente obrigado?

Enquanto a sra. Merkel manifesta, na sua gestão política, um grande respeito pelo Tribunal Constitucional alemão, evitando tomar decisões que possam ir contra as normas constitucionais, por cá faz-se exactamente o contrário, ano após ano, e só falta pedir que se suspenda a Constituição da República Portuguesa e, com ela, a separação de poderes e a democracia. Enquanto a sra. Merkel toma decisões que vão ao encontro do interesse dos seus eleitores e faz as afirmações que tanto lhes agradam ouvir, por cá o ministro das Finanças dirige-se a membros do partido maioritário referindo-se aos ‘vossos’ eleitores, sem esconder o desprezo que a democracia e os seus concidadãos lhe suscitam.

Quando, durante a última campanha eleitoral, um turista finlandês abordou o então candidato a primeiro-ministro, em campanha na Madeira, dizendo-lhe que esperava não ter que ser ele a pagar-lhe o almoço, a história foi apresentada pela imprensa como mais uma prova da bancarrota a que o país chegara e que alimentava o discurso de quem queria chegar ao poder na altura. E as reacções a uma tal humilhação ficaram-se pelos sorrisos de compreensão e cumplicidade. Quando os dirigentes nacionais se assumem como líderes de um protectorado, tutelado por forças externas onde não existem eleitores, nem regras da democracia, nem política que não seja a da obediência a outros líderes europeus, não é preciso ir muito longe para encontrar os verdadeiros inimigos do país.

 
Psicóloga social e professora catedrática do ISCTE
 
 
 

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