Opinião enfurece fundação europeia que avaliou ciência portuguesa para a FCT

Responsável da European Science Foundation, que organizou a avaliação dos centros de investigação portugueses a pedido da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, ameaçou processar a autora de um artigo de opinião que menciona “falhas” nesse processo. O alvo é a cientista Amaya Moro-Martín, conhecida por ter escrito uma carta a Mariano Rajoy a despedir-se do seu país.

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A astrofísica espanhola Amaya Moro-Martín, que se tem batido em defesa da ciência e dos cientistas DR

Uma referência ao processo de avaliação dos centros de investigação em Portugal, num artigo de opinião na revista Nature, está a desencadear uma “tempestade” que extravasou as fronteiras portuguesas. Tudo começou quando a autora do artigo, a astrofísica espanhola Amaya Moro-Martín, escreveu que o processo de avaliação, apoiado pela European Science Foundation (ESF), tinha “falhas”. Um responsável da ESF enviou-lhe um email a dizer que, se ela não retractasse publicamente essa afirmação, a fundação europeia iria avançar com um processo legal contra ela.

Publicado na edição da semana passada da Nature, o artigo intitulado Um apelo àqueles que se preocupam com a ciência na Europa dedica uma única frase à situação da ciência e dos cientistas em Portugal: “Já debilitada com cortes de 50% nos orçamentos das universidades e centros de investigação, Portugal pode agora ter de fechar metade das suas unidades de investigação, devido a um processo de avaliação com falhas apoiado pela European Science Foundation.”

Amaya Moro-Martín está a referir-se ao processo de avaliação em curso de 322 centros de investigação, que a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), a principal financiadora pública da investigação portuguesa, encomendou à ESF (com sede em Estrasburgo, França), mediante um contrato.

Na primeira fase da avaliação, incluindo já os resultados das reclamações apresentadas pelos centros avaliados, quase metade deles ficou eliminada, tal como estava previamente estabelecido no contrato. Assim, ficaram para trás 144 centros (44,7%), que nenhum ou pouco dinheiro vão receber para despesas de funcionamento nos próximos cinco anos, e passaram à segunda fase da avaliação 178 (55,2%). O processo tem provocado polémica em Portugal desde que, no final de Junho, a FCT divulgou os primeiros resultados e, pouco depois, revelou o conteúdo do contrato com a ESF, ficando-se a saber da existência de uma quota a priori para eliminar 50% dos centros.

O que dizia o email
Mas a ESF não gostou de ver essa frase de Amaya Moro-Martín sobre a avaliação portuguesa numa revista científica de difusão mundial, e Jean-Claude Worms, responsável do Gabinete de Apoio à Ciência da fundação, reagiu. “A ESF vem pedir que se retracte da seguinte alegação na sua peça de opinião publicada a 8 de Outubro na Nature”, escreveu-lhe Jean-Claude Worms, referindo-se à frase já mencionada. “A ESF refuta qualquer alegação de falhas no processo e considera caluniosa a declaração citada, uma vez que o trabalho realizado no quadro da avaliação pela FCT das unidades de investigação seguiu as melhores práticas internacionais”, acrescentava. “Se a sua alegação não for retractada publicamente na Nature, a ESF será obrigada a tomar as acções legais apropriadas.”

Jean-Claude Worms mostrava, aliás, estar bem informado sobre a avaliação a nível interno, visto referir a denúncia  feita em Setembro pelo Sindicato Nacional do Ensino Superior (de diversas ilegalidades) ao Ministério Público português. “Tal como deve saber, o sindicato nacional português para o ensino superior apresentou formalmente uma acção legal contra o processo de avaliação, que ainda não tem uma conclusão”, dizia Jean-Claude Worms no email, que a própria Amaya Moro-Martín confirmou ao PÚBLICO ter recebido.

A partir daqui, as reacções de apoio a Amaya Moro-Martín, por um lado, e de crítica à ESF e à FCT, por outro, foram aumentando. O físico Carlos Fiolhais, que tem contestado duramente a forma como este processo de avaliação tem decorrido, escreveu um post no blogue De Rerum Natura, de que é um dos fundadores, com o título Artigo na Nature aponta o dedo à avaliação defeituosa da ESF/FCT em Portugal. Também aí a frase já referida era destacada.

Acontece que entre os comentários ao post de Carlos Fiolhais encontrava-se um da socióloga portuguesa Rosário Mauritti, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) do ISCTE, em Lisboa, no qual tornava público o email de Jean-Claude Worms. Rosário Mauritti tinha-o recebido da própria Amaya Moro-Martín.

Tanto a astrofísica espanhola como a socióloga portuguesa estão, respectivamente em primeiro e terceiro lugar, na lista dos nove investigadores de vários países europeus que lançaram uma carta aberta sobre a ciência na Europa, publicada em vários jornais europeus, incluindo o PÚBLICO. Essa carta — Eles escolheram a ignorância, que pode ser assinada em openletter.euroscience.org desde 8 de Outubro — criticava as políticas europeias em geral de desinvestimento público na ciência.

Até ao final do dia desta quarta-feira (ontem), a carta aberta tinha sido assinada por mais de 10.000 cientistas de vários países — de Portugal ultrapassavam os 1150. Além de Carlos Fiolhais, entre os signatários está a imunologista Maria de Sousa, o biólogo Alexandre Quintanilha ou os sociólogos António Firmino da Costa e Karin Wall.

Ao mesmo tempo do lançamento da carta aberta, Amaya Moro-Martín publicava na Nature, como única autora, o artigo da polémica, em que criticava os cortes na ciência europeia, de Portugal à Grécia e à Alemanha, passando por Espanha, e convidava os leitores a assinar a petição. “Quando o Parlamento Europeu perguntou ao novo comissário europeu indigitado para a investigação sobre o que é que o continente deveria fazer sobre o estado da sua ciência, [o português] Carlos Moedas prometeu maior cooperação entre os Estados-membros”, lê-se na primeira linha do artigo. “Talvez Moedas não tenha reparado, mas já estamos unidos: para protestar contra cortes orçamentais violentos que estão a destruir a nossa base científica e a ameaçar o futuro da nossa economia.”

Esses cortes, alertava Amaya Moro-Martín, estão a levar a uma fuga de cérebros — aqueles que conseguem, vão dos países do Sul da Europa para os do Norte, e aqueles que não conseguem são obrigados a sair do continente europeu. A astrofísica espanhola sabe do que fala: em Janeiro deste ano, à beira dos 40 anos de idade, deixou Espanha para trás e foi para os Estados Unidos, onde trabalha no Instituto de Ciência do Telescópio Espacial e na Universidade Johns Hopkins, ambos em Baltimore. “Tal como muitos outros cientistas, saí de Espanha em consequência directa dos cortes no orçamento da investigação e desenvolvimento”, diz-nos.

Antes, tinha escrito uma carta aberta a Mariano Rajoy, presidente do governo espanhol, que recebeu bastante visibilidade ao ser publicada, em Agosto de 2013, no jornal espanhol El País e no britânico The Guardian. Em Despedida de uma cientista que está a fazer as malas, a astrofísica terminava a dizer: “Mariano, durante o seu mandato, a investigação está a afundar-se irremediavelmente em direcção ao abismo da fossa das Marianas. Se é certo que os nossos colegas cientistas descobriram vida lá em baixo, devo dizer-lhe que é bacteriana.”

Amaya Moro-Martín gosta de cartas abertas e está visto que elas até têm tido repercussão. A divulgação do email de Jean-Claude Worms ateou novamente um rastilho de críticas contra a avaliação da FCT em conjunto com a ESF, que começou com uma série de comentários online ao artigo de opinião da astrofísica na Nature. Carlos Fiolhais lançou aí o repto, aceite por outros comentadores, muitos deles portugueses: “Se a ESF deseja pôr uma alguma acção legal contra pessoas que dizem a verdade sobre a avaliação da ESF/FCT, podem incluir-me na lista, uma vez que disse exactamente isso à [revista norte-americana] Physics Today há algum tempo [em Setembro], sem que houvesse qualquer reacção da ESF.” Antes, o físico português tinha ainda dito: “A avaliação da ESF/FCT tem de facto falhas. Houve quotas ocultas, definidas a priori, segundo as quais só 50% dos institutos de investigação podia ter uma avaliação superior a Bom [e assim passar à segunda fase]. Esta quota foi escondida aos investigadores, mas explicitamente mencionada três vezes no contrato entre a agência de financiamento público FCT e a ESF.”

O silêncio da ESF
Por agora, a Nature não faz comentários sobre o email de Jean-Claude Worms — não se sabe se já lhe respondeu ou se irá tomar alguma posição. “Este assunto está a ser analisado pela Nature e não podemos fazer mais comentários”, responde-nos Rebecca Walton, do gabinete de imprensa da revista. “A Nature pediu-me para não responder ou fazer comentários enquanto estão a olhar para o assunto”, diz-nos por sua vez Amaya Moro-Martín, especificando ainda que nada respondeu ao responsável da ESF. “Agradeço bastante o apoio que tenho tido da comunidade científica, em particular de Portugal”, refere apenas.

Na ESF, os vários emails enviados pelo PÚBLICO nos últimos três dias a Jean-Claude Worms, com conhecimento para outros responsáveis da fundação, esbarraram no silêncio. Até ao final da tarde desta quarta-feira, ficou assim sem se saber se Jean-Claude Worms considera que as pessoas não têm direito à opinião, mesmo que possa estar errada, ou como explica a inclusão no processo de avaliação da quota de 50% de eliminações dos centros.

No entanto, a ESF terá respondido sobre o caso a um jornalista da revista National Geographic, Dan Vergano. Esta quarta-feira, o jornalista divulgou no Twitter que a ESF “não tenciona” processar ninguém “neste momento”.

A polémica já tinha também chegado no domingo ao blogue Retraction Watch, seguido em todo o mundo por milhares de pessoas que querem estar a par das retracções ligadas ao processo científico, por exemplo de artigos retirados de publicação por falhas ou fraude. O blogue relatava o caso de Amaya Moro-Martín, da ESF e da avaliação dos centros portugueses. E a polémica subjacente ganhou assim ainda mais visibilidade.

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