O que é a moral?

Guiamo-nos pela intuição e por um código apreendido de regras de bom senso para decidir sobre questões de ética e de moral. O que nos diz a filosofia e como pode a ciência lançar luz sobre as nossas reacções emocionais.

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Há acções intrinsecamente erradas ou será que são erradas apenas por causa das suas consequências? Vamos supor que ao torturar alguém estamos a salvar uma vida humana, ou dez, ou cem. Se for assim, deveria a tortura ser moralmente admissível ou até mesmo imperativa? Vamos supor que com a pena de morte estamos, de facto, a impedir o assassínio e que cada execução pode salvar duas vidas de inocentes, ou três, ou uma dúzia. Se for assim, deveria a pena de morte ser moralmente admissível ou talvez até imperativa? E como deveríamos estar a responder a estas perguntas?

Numa certa perspectiva, o melhor método, talvez o único viável, seja começar por examinar as nossas intuições. Algumas pessoas afirmarão convictamente que é errado que um governo execute ou torture pessoas, mesmo que com tal consiga travar o crime. Para algumas pessoas, é um dado adquirido que um país não deve bombardear uma cidade estrangeira e tirar a vida a milhares de civis, mesmo que venha a poupar muitas mais vidas. Se nos sentirmos inclinados a concordar com estas conclusões, podemos tentar testá-las, nomeadamente consultando uma vasta gama de casos hipotéticos. O processo pode ser-nos útil para apurar as nossas intuições. E até ajudar a perceber a sua concordância e como se relacionam com os valores universais que aparentemente as justificam e os quais, também elas, acabam por justificar.

Muitos filósofos sentem-se inclinados a ver as coisas desta forma. Para testar as nossas intuições morais e perceber mesmo o que a moralidade exige, ocuparam-se com uma série de dilemas, na sua maioria conhecidos como Dilemas do Trólei. Eis dois dos mais importantes:

1. O Problema do Trólei. Está em pé, ao lado de uma linha férrea, e vê um comboio a aproximar-se de si. Percebe que os seus travões falharam. Há cinco pessoas amarradas ao carril. Vão morrer, a não ser que tome uma atitude. E você está mesmo ao lado de um interruptor. Se o puxar, o comboio muda de linha. O problema é que há uma pessoa amarrada nessa outra linha e ao puxar o interruptor irá matá-la. Deve puxá-lo?

2. O Problema da Ponte. Está numa ponte pedonal a olhar para a linha férrea e vê um comboio aproximar-se. Percebe que os seus travões falharam. Há cinco pessoas amarradas ao carril. Vão morrer, a não ser que tome uma atitude. Um homem gordo está ao seu lado, debruçado na ponte, também a ver o comboio. Se o empurrar, ele vai cair e estatelar-se nos carris. E porque é obeso, o seu corpo irá travar o comboio e assim salvar as cinco pessoas — apesar de ele próprio morrer. Deverá empurrá-lo?

As intuições da maioria das pessoas sobre estes dois dilemas são muito claras. No Problema do Trólei, deveria puxar o interruptor; já no Problema da Ponte, não deveria empurrar o homem gordo. A questão é: o que diferencia estes dois casos? Uma vez identificada a resposta, talvez estejamos em condições de esclarecer o que está bem e o que está mal — não só sobre tróleis e pontes pedonais, mas sobre os pilares onde assenta a ética e os limites ao pensamento utilitarista. E, na volta, pode-se responder a uma vasta gama de questões que se colocam na vida real, questões que envolvem não apenas os temas da tortura, da pena de morte e dos conflitos armados, mas também o uso legítimo da coerção, das nossas obrigações para com estranhos e, no que respeita a temas de saúde e da segurança, onde e como devemos situar as análises de custo-benefício.

A "mãe" do dilema

Em Would You Kill The Fat Man (Princeton University Press), um livro elegante, lúcido e amiúde divertido, David Edmonds, um académico da Universidade de Oxford, explora os Problemas do Trólei e da Ponte e todos os comentários brilhantes que já foram proferidos à volta do tema. Philippa Foot, que ensinou Filosofia em Oxford entre 1940 e meados de 1970, foi a “mãe” do Dilema do Trólei (e também a neta de Grover Cleveland, por duas vezes Presidente dos Estados Unidos no século XIX).

Naquele período, Oxford era dominada por homens, mas três dos seus mais proeminentes filósofos eram mulheres — Foot, Elizabeth Anscombe (que foi recrutada pela própria Foot) e Iris Murdoch. Edmonds explica que as relações entre elas, filosóficas e não só, não estavam imunes a complicações várias. M.R.D. Foot, que veio a tornar-se o marido de Philippa, foi um dos muitos amantes renegados de Murdoch. O casamento dificilmente aguentou os embates dessa relação (“Perder-te & perder-te dessa maneira foi uma das coisas mais terríveis que me aconteceram”, escreveu Murdoch a Philippa). Depois de M.R.D. Foot deixar a mulher, ela e Murdoch voltaram a ser amigas (e tiveram um breve affair).

Anscombe disse uma vez que Foot era a única filósofa de Moral a quem valia a pena estar atento em Oxford, mas ambas tiveram profundas divergências sobre contracepção e aborto (para Foot, moralmente aceitáveis). Anscombe discordava veementemente usando mesmo a expressão “assassina” para descrever “quase todas as mulheres que escolhem abortar”. Para Foot, Anscombe era “mais papista do que o Papa”.

O Dilema do Trólei germinou nestes debates. Assombrada pela Segunda Guerra Mundial e os seus horrores, Foot rejeitava a perspectiva que grassava nalguns círculos em Oxford de que os julgamentos éticos não representam mais do que declarações de preferência pessoal. Assim como reivindicava que a melhor forma de os analisar era perceber como é que palavras mais relevantes são usadas na linguagem comum. Foot acreditava que os julgamentos éticos podem ser questões de princípio. Em 1967, publicou um artigo — “The Problem of Abortion and the Doctrine of the Double Effect”, em tradução literal, “O problema do aborto e a Doutrina do Duplo Efeito” — uma teoria que se baseia no pressuposto de que um mau resultado pode ser aceite moralmente se for apenas efeito colateral de uma boa acção.

Doutrina do Duplo Efeito é muito conhecida no contexto do pensamento católico. Distingue de forma precisa entre o que podem ser danos causados de uma forma intencional — não admissíveis — e os que simplesmente podem vir a acontecer — admissíveis. De acordo com a teologia católica, uma mulher pode fazer uma histerectomia para retirar um tumor que põe em perigo a sua vida, mesmo que tal signifique que o feto morra. A razão que está por trás é salvar-lhe a vida, não a de matar o feto. Para explorar esta distinção, Foot introduziu uma série de dilemas hipotéticos, incluindo o Problema do Trólei e o Caso do Transplante — que questiona se deve um cirurgião matar um homem jovem com a intenção de preservar os seus órgãos porque irão salvar cinco pessoas em risco de vida. Para Foot, é claro que tal não deverá ser permitido ao cirurgião, ainda que vidas possam ser salvas. (Curiosamente, Foot não chega a nenhuma conclusão sobre se uma mulher deve fazer um aborto mesmo quando a sua vida e a saúde não correm perigo.)

Talvez a Doutrina do Duplo Efeito possa explicar porque é correcto puxar o interruptor no Problema do Trólei (quando a intenção é não matar ninguém) mas já é errado matar um jovem homem no Caso do Transplante (cuja morte é intencional). Mas, numa argumentação mais intrincada, Foot conclui, por fim, que, nestes casos, a melhor forma para explicar as nossas intuições contraditórias será equacionar, não entre os efeitos intencionais e os previsíveis, mas antes entre obrigações negativas (como o imperativo de não matar uma pessoa) e as positivas (como a de salvar uma pessoa). Num artigo escrito posteriormente, Foot enfatizava que no Problema do Trólei a questão reside em redireccionar uma ameaça latente, que poderá ser moralmente aceitável (mais do que criar uma nova ameaça, como acontece no Caso do Transplante).

O Problema da Ponte foi concebido por Judith Tarvis Thomson, uma filósofa do Massachusetts Institute of Technology, e granjeou-lhe fama. Ao impor uma distinção moral entre o Problema do Trólei e o Poblema da Ponte, Thomson chamou a atenção para os direitos das pessoas. Na sua perspectiva, o homem gordo tem o direito a não ser empurrado e morto, mas o mesmo não é verdade para o infeliz que está amarrado ao carril no Problema do Trólei. “A moral não nos exige que deixemos que um pesado fardo vindo do nada caia para cima de cinco [pessoas], quando sabemos que o podemos fazer cair em cima de apenas uma.” Um transeunte não pode empurrar alguém para a morte, mas pode, legitimamente, procurar minizar os efeitos, “o número de mortes que serão o resultado de uma ameaça que já existe”.

Quando Edmonds reflecte sobre estas questões do trabalho de Thomson, diz que ela está a ser discípula de Emmanuel Kant, que acreditava que as pessoas não devem ser apenas meios para atingir fins de outrem. A própria Foot já se referia à “existência de uma moralidade que recusa culpabilizar o sacrifício de um em prol do bem de muitos... [e] garante a cada indivíduo um determinado espaço moral, um espaço que outros não devem invadir”. Muitas pessoas acreditam que quando dizemos que é moralmente inaceitável empurrar o homem gordo (ou roubar órgãos vitais, ou torturar ou executar pessoas), estamos a dar respostas profundamente enraizadas no pensamento kantiano, e têm toda a razão.

Regras que nos guiem

Claro que é verdade que a corrente utilitarista rejeita aquele tipo de intuições e insiste que o que interessa é o “bem de muitos”. De acordo com os princípios do utilitarismo, tanto o Problema do Trólei como o da Ponte se assemelham e são de fácil resolução. Devemos puxar o interruptor e empurrar o homem gordo porque é melhor salvar cinco pessoas do que uma só. Mas numa outra discussão que emerge do próprio Problema da Ponte — e que pode salvaguardar a posição do homem gordo —, John Stuart Mill salienta que, do ponto de vista do utilitarismo, pode ser melhor a adopção de medidas muito claras que sustentem e até valorizem a noção de “utilidade” em geral, no sentido do bem-estar de todos e até na do Estado social, mesmo que isso possa levar a minorar a noção de utilidade em alguns casos individuais. Nas palavras de Edmonds: “Seria um desastre se, de cada vez que agimos, tivéssemos de reflectir sobre as consequências da nossa acção. Por um lado, porque seria um processo mais demorado; por outro, criaria um mal-estar popular. Muito melhor é ter um conjunto de regras que nos guiem.”

Por princípio, juízes partidários do utilitarismo estariam dispostos a condenar um inocente, a executá-lo até, se a consequência beneficiasse o bem-estar de todos. Mas um utilitarista tem também de compreender que, se o nosso sistema legal tivesse abertura para descurar a questão da inocência e da culpa, poderia muito bem colapsar. Em muitas situações, seguimos um código de regras simples que até agora têm provado ser bem sucedidas no que diz respeito ao conjunto da sociedade, e que facilitam muito mais a vida do que se apenas observássemos caso a caso. Escreve Edmonds: “Seria muito desestabilizador se nos tivéssemos de preocupar com a ideia de que cada vez que visitamos um parente doente no hospital poderíamos ser nós próprios a acabar escalpelizados e com o cirurgião a retirar-nos os nossos órgãos. É por isso que nos devemos conformar com estas regras predefinidas.”

Mesmo aceitando esta conclusão, os utilitaristas deveriam estar preparados para admitir que seria aceitável, obrigatório até, empurrar o homem gordo sob determinadas circunstâncias — por exemplo, se se desse o caso de não pôr a coesão social em risco, ou de nunca ninguém vir a saber o que se passou.

Como resposta, Edmonds invoca o famoso argumento de Bernard Williams segundo o qual os utilitaristas, perante este tipo de problemas, apontam na direcção errada. Williams inventou um problema, que entretanto se tornou largamente conhecido e que postula algo parecido com o da Ponte: uma personagem de nome Jim vai dar a uma cidade da América do Sul onde homens armados se preparam para disparar sobre 20 pessoas. O líder daqueles homens comunica a Jim que, se for ele próprio a disparar sobre uma das pessoas, libertará os restantes 19. Deverá Jim disparar?

Williams argumenta que a integridade da pessoa é importante, logo os utilitaristas estão errados quando acreditam que a escolha de Jim está facilitada pelo simples facto de 20 serem mais do que um. Nas palavras de Edmonds, o problema é este: “Tudo o que interessa aos utilitaristas é aquilo que é capaz de produzir o melhor resultado, e não quem produz esse resultado ou como se lá chegou.” Para muitos filósofos, Williams está de facto no bom caminho e identificou uma séria objecção ao que é preconizado pelo utilitarismo, uma objecção que, no Problema da Ponte, ajuda a resgatar as nossas intuições.

Para outro debate, Williams trouxe o caso de um homem que, perante o dilema de poder salvar uma de duas pessoas em perigo, escolhe salvar a sua própria mulher. De forma memorável, Williams salienta que se o homem parasse para pensar em quem salvar, e se estaria ou não a ser imparcial, seria “pensamento a mais”. Algumas pessoas podem dizer o mesmo acerca do Problema da Ponte. Do ponto de vista moral, a resposta correcta poderá ser a recusa pura e simples de empurrar um inocente para a morte.

Edmonds está consciente de que os psicólogos e economistas comportamentais levantaram questões sérias sobre o pensamento intuitivo, questões que podem criar obstáculos a filósofos como Foot, Thomson e Williams. No trabalho pioneiro que foi o de Daniel Kahneman e Amos Tversky, eles mostravam como as nossas intuições são altamente vulneráveis à “moldura”. Se for dito às pessoas que 90% daqueles que são submetidos a uma cirurgia estarão vivos ao fim de cinco anos, a tendência será pensar que a intervenção é uma boa ideia. Pelo contrário, se lhes for dito que 10% morrem ao fim de cinco anos, então tenderão a pensar que é uma má ideia. O cenário também conta. Quando as pessoas estão de bom humor — por exemplo, por causa do tempo meteorológico ou por estarem a ler histórias felizes — as suas intuições podem ser diferentes do que quando estão zangadas ou tristes.

Cientistas comportamentais (como o são Kahneman e Tversky) também mostraram que as pessoas confiam na heurística ou em regras simples do consenso [regras que não pretendem ser rigorosas nem aplicáveis a todas as situações], regras estas que podem conduzir a erros sistemáticos. Quando as pessoas dependem da heurística, substituem uma pergunta fácil por outra difícil. Kahneman associa a heurística àquilo que ele chama “pensar rápido”, que se encontra nas formas mais intuitivas do sistema cognitivo, algo que os psicólogos descrevem como Sistema 1 [a heurística constitui-se de regras baseadas na experiência ao invés das baseadas na procura algorítmica que chega a uma solução correcta depois de o problema ser combinado com todas as soluções possíveis]. “Pensar devagar” evita a heurística para favorecer abordagens mais deliberadas, intencionais, e isso é um produto do Sistema 2.

Olhemos para a heurística da representatividade, em concordância com quais dos nossos julgamentos intuitivos sobre probabilidades são influenciados pelas nossas avaliações sobre a proximidade (no sentido de que

A “se parece com” B). A heurística da representatividade é comummente exemplificada pelas respostas que as pessoas dão sobre a hipotética carreira de uma mulher de nome Linda, algo que é descrito da seguinte forma:

Linda tem 31 anos, é solteira, eloquente e muito inteligente. Licenciou-se em Filosofia. Enquanto estudante preocupava-se enormemente com questões relacionadas com justiça social e discriminação, e era ainda activa em manifestações antinucleares.

Solicitou-se às pessoas que fizessem uma lista, por ordem de prioridade, de oito possíveis futuros para a Linda. Vários responderam assistente social na área psiquiátrica e professora de escola primária; as duas principais escolhas foram “empregada de balcão num banco” e “empregada de balcão num banco [e também] activista no movimento feminista”.

A maioria respondeu ser menos esperado que fosse uma mera empregada de balcão num banco. Antes, empregada de balcão mas feminista. E este é um erro óbvio (o que se chama um erro de conjunção), no qual se pensa que os elementos A e B são mais parecidos entre si do que a probabilidade de A sozinho. Por uma questão de lógica, um resultado sozinho é mais provável do que um resultado que inclua esse mesmo e ainda um outro. É um erro que advém da heurística da representatividade. Numa primeira e rápida apreciação, a descrição de Linda aparenta combinar com “empregada de balcão de banco e activista no movimento feminista”.

Ao reflectir sobre este exemplo, Stephen Jay Gould observa o seguinte: “Sei [a resposta correcta], mas o pequeno homunculus [homenzinho] dentro da minha cabeça continua aos pulos para cima e para baixo, a gritar — ‘espera, ela não pode simplesmente ser uma empregada de balcão do banco; lê a descrição.”

Com respeito para com o Problema do Trólei, as intuições são igualmente afectadas pelos enquadramentos e contextos. Quando pela primeira vez se pergunta às pessoas sobre o Problema da Ponte, e em seguida lhes damos também o Problema do Trólei, elas inclinam-se para não accionar o interruptor neste último caso. Se antes de serem inquiridas sobre o Problema da Ponte as pessoas tiverem assistido a uma comédia, há uma propensão para empurrar o homem gordo, mais do que se tiverem visto um documentário entediante. Se o homem gordo tiver um nome e for o de Tyrone Payton, os liberais tenderão mais depressa a empurrá-lo do que se o seu nome for Chips Ellsworth III (como se conclui, os conservadores não são afectados por nomes destes) [os casos hipotéticos de Tyrone e Chips foram estudados por David Pizarro, académico da Cornell University, e prender-se-iam com a cor da pele, sendo presumível que Tyrone fosse negro e Chips branco]. E se a questão envolver não um homem gordo, mas um gordo macaco (que terá de ser empurrado para salvar cinco macacos), bem, então as pessoas ficam muito mais utilitárias e mais dispostas a empurrar.

O papel das emoções

Nos últimos anos, os neurocientistas têm também trabalhado sobre as intuições. Como reage o cérebro humano ao Problema do Trólei e ao da Ponte? Joshua Greene, um psicólogo de Harvard, tem desenvolvido trabalho significativo nesta área, tentando combinar as respostas que as pessoas dão com as mudanças que realmente acontecem no cérebro. Ele reivindica que o Problema da Ponte envolve mais os sectores das emoções do que o do Trólei. Greene e os seus assistentes e co-autores [na dissertação “The Terrible, Horrible, No Good, Very Bad Truth About Morality and What To Do About It”] descobriram que “há variações sistemáticas no papel que as emoções ocupam nos julgamentos morais” e que as áreas do cérebro associadas à emoção se tornam muito mais activas quando em presença do Problema da Ponte. O mais surpreendente deste argumento é que as partes emocionais do nosso cérebro, que se desenvolvem mais cedo e operam de forma automática e rápida, estão tendencialmente mais propensas a sentimentos de uma obrigação moral — e nisso conducentes a abordagens que os filósofos chamam “deontológicas”.

Greene e os seus co-autores desenvolveram vários estudos que suportam esta conclusão. Por exemplo, pessoas que têm um determinado tipo de lesão cerebral que interfere com regiões normalmente mais associadas à emoção do que à cognição são mais propensas a empurrar o homem gordo do que aquelas que não apresentem esse tipo de lesão. Assim como pessoas que têm um estilo mais verbal do que “cognitivo” — no sentido de que apresentam melhores resultados em testes de avaliação visual do que nos de avaliação verbal — estão mais inclinados para defender abordagens deontológicas (e para se recusarem a empurrar o homem gordo). Segundo palavras dos próprios autores, “à imaginação visual cabe um papel importante no desencadear das respostas emocionais automáticas que sustentam as avaliações deontológicas”.

Pode ser tentador pensar nestas descobertas para defender o utilitarismo, mas essa é uma tentação a que devemos resistir. Suponhamos que os sectores emocionais do cérebro realmente produzem de imediato intuições deontológicas. Não significa isso que sejam intuições erradas. Para saber se o são, precisamos de um argumento moral e não de um scanner ao cérebro.

Já alertado para esta questão, Edmonds termina por nos dar, ainda que de forma breve, a sua própria opinião. Diz-nos que a Doutrina do Duplo Efeito garante a solução mais acertada, e que Foot e Thomson conduziram os filósofos em direcções erradas quando se recusaram a aceitar isso mesmo. É de relembrar o que nos diz a Doutrina do Duplo Efeito, que distingue entre danos provocados intencionalmente — não moralmente aceites — e danos meramente previsíveis — como acontece quando uma cirurgia para remover um tumor que coloca em risco a vida da pessoa pode provocar um aborto. Edmonds insiste que esta doutrina tem “uma poderosa ressonância intuitiva” e que há de facto diferenças entre “intencional e apenas previsível”. Para Edmonds, a solução para o Problema do Trólei como para o da Ponte reside na aceitação dessa diferença, e isso pesa nas nossas intuições. Pensa ele que “a solução tem muitas virtudes: é simples e económica, não aparenta ser arbitrária e apela à intuição perante um vasto número de casos. É a razão pelo qual o homem gordo estaria seguro pelo menos de mim”.

Edmonds escreveu um livro lúcido, imparcial e divertido. Mas o debate que lança levanta dúvidas sobre o método generalizado de solucionar questões de ética, com o qual ele se compromete e no qual o Problema da Ponte pode ser visto como um caso extremo. O método socorre-se de dilemas morais inusitados, na maioria muito além de nossas experiências mais banais, e pede às pessoas que identifiquem as suas intuições sobre a solução mais aceitável. Se o método é usado com precaução, as intuições, ainda que muito respeitadas, não têm de ser necessariamente encaradas como imperativas. Assim, por um lado temos Edmonds, que, em defesa da Doutrina do Duplo Efeito, reivindica que “um vasto número de casos atraem as nossas intuições”; por outro, o enfoque, defendido por Foot, Thomson e Williams, que reagimos intuitivamente perante casos em particular que parecem confundir o pensamento utilitário. Mas será que deveríamos mesmo atribuir um papel relevante a estas reacções?

Se juntarmos a perspectiva de Mills sobre as virtudes de regras claras, simples e pré-definidas com um pouco de psicologia, poderíamos abordar a questão da seguinte forma: muitos dos nossos julgamentos morais são reflexo da heurística moral, dos nossos princípios morais, que geralmente funcionam. Não devemos mentir nem roubar; não devemos torturar; e certamente não devemos empurrar pessoas para a morte. É expectável e importante que assim seja, que todos sigamos regras como estas. Quanto mais não seja porque se nos pomos a pensar caso a caso, se devemos ou não mentir, torturar ou empurrar alguém para a morte, podemos acabar por o fazer mais vezes do que seria aconselhável. Se calhar, podemos avaliar e julgar de forma impulsiva; se calhar, em proveito próprio. As interdições morais só nos fazem bem.

É por esta razão que quando Bernard Williams se refere “a demasiado pensamento” isso nos é útil, ainda que possa não ser pelos argumentos que apresenta. Não deve ser encarado como uma maneira de objectar o utilitarismo, mas como um modo airoso de reter o funcionamento automático e natural da heurística moral (incluindo o que nos leva a dar prioridade às pessoas que amamos). Se esta perspectiva estiver correcta, então é também feliz a noção de que as pessoas intuitivamente se opõem à ideia de empurrar o homem gordo. Não desejamos viver numa sociedade em que as pessoas se sintam confortáveis por andar a empurrar pessoas para a morte — ainda que a resposta moral correcta no caso do Problema da Ponte seja, de facto, empurrar o homem gordo.

Seguindo esta perspectiva, não podemos concordar com Foot, Thomson e Edmonds, quando estes assumem que as nossas intuições morais sobre os dilemas mais invulgares carregam já por si uma autoridade independente e são merecedoras de todo o respeito, ao invés de as encararem como subprodutos de um desejável código de regras morais. Em consequência, a empreitada de fazer filosofia tomando como referência esses mesmos dilemas está inadvertidamente a replicar os trabalhos iniciais de Kahneman e Tversky, ao desmascarar situações fora do comum perante as quais as nossas intuições, que normalmente são sensatas, acabam por disparar em várias frentes mas falhar o alvo. A ironia é que, onde Kahneman e Tversky procuravam demonstrar as razões dessa falha, acaba por ser algo que serve as teorias de vários filósofos que estão convictos de que as intuições deveriam ter maior peso e ser levadas em conta quando julgamos sobre aquilo que nos é exigido pela moral. É legítimo perguntar se o trabalho de Kahneman, Tversky e os seus discípulos pode conduzir-nos a repensar as nossas intuições, mesmo no domínio da moral.

Nada do que eu disse confirma que seria aceitável empurrar o homem gordo. Quando Kahneman e Tversky investigaram a heurística, fizeram-no nas suas áreas de risco e incerteza, onde podiam provar que os humanos cometem erros lógicos. Já no domínio da moral, tal não é possível. Mas aqueles que permitiriam que cinco pessoas morressem talvez possam considerar a possibilidade de que as suas intuições são reflexo de uma certa perspectiva como a do homunculus de Gould, aos pulos e aos gritos: “Não matem o inocente.” A verdade é que esse homenzinho pode estar certo. Mas se calhar deveríamos estar a prestar atenção a outras vozes.

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Christopher Kimmel/Corbis

Exclusivo PÚBLICO/ The New York Review of Books     

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