O pássaro-do-mel e a etnia ajaua, uma relação de entreajuda notável

Estudo decorreu na Reserva Nacional do Niassa, no Norte de Moçambique, onde há quem apanhe mel silvestre com a colaboração de uma ave. Ela fica com a cera dos favos e os humanos, claro, com o mel. Este é um caso muito raro de mutualismo entre nós e uma espécie selvagem.

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Moçambicano com um pássaro-do-mel fêmea Claire Spottiswoode
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Pássaro-do-mel macho Claire Spottiswoode
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Pássaro-do-mel fêmea Claire Spottiswoode
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O pássaro-do-mel (Indicator indicator) também é conhecido como indicador-grande Claire Spottiswoode
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As colmeias podem estar escondidas em buracos no tronco das árvores Claire Spottiswoode
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O fogo é usado para controlar as abelhas Claire Spottiswoode
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Moçambicano a apanhar mel silvestre usando ferramentas e fogo Claire Spottiswoode
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Moçambicano a apanhar mel silvestre usando ferramentas e fogo Claire Spottiswoode
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Abertura de uma colmeia no interior do tronco de uma árvore Claire Spottiswoode
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A comer mel Claire Spottiswoode
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Apanhadores de mel a chamar o pássaro-do-mel Claire Spottiswoode

O artigo científico, na revista Science, começa com uma descrição de um missionário português do século XVI, João dos Santos, que nessa altura se encontrava na região de Sofala, agora uma província de Moçambique. João dos Santos tinha reparado numa ave que entrava com frequência na igreja, corria o ano de 1588, e que comia bocadinhos de cera das velas. Esta ave – notava João dos Santos no livro Ethiopia Oriental, e varia historia de cousas notaveis do Oriente, que publicou em 1609, já depois do regresso à sua terra natal, Évora – tinha ainda o hábito peculiar de conduzir as pessoas até às colmeias de abelhas no mato, com chamamentos e voando de árvore em árvore. E depois de as pessoas terem apanhado o mel, a ave comia os favos de cera deixados para trás. “Sabemos que esta espécie é o pássaro-do-mel Indicator indicator e que a descrição de Dos Santos era rigorosa”, diz o artigo na última edição da Science.

A bióloga sul-africana Claire Spottiswoode, das universidades de Cambridge (Reino Unido) e da Cidade do Cabo (África do Sul), ficou a saber de certas particularidades comunicacionais entre a etnia ajaua, cujas populações apanham mel no mato, e os pássaros-do-mel. Quem lhe falou dessas particularidades (e já lá iremos) foram dois biólogos seus conterrâneos, Keith Begg e Colleen Begg, que têm trabalhado em conservação da natureza no Norte de Moçambique, como coordenadores do Projecto Carnívoros do Niassa. Claire Spottiswoode avançou então para uma série de experiências na Reserva Nacional do Niassa (localizada nas províncias do Niassa e de Cabo Delgado) e que tiveram a colaboração dos ajaua.

“Esta região é conhecida pelo mel e pela produção de cera de abelha há séculos, pelo menos desde os tempos do comércio árabe. O povo local ajaua ainda apanha mel silvestre utilizando métodos tradicionais, e esta prática mantém-se economicamente importante”, contextualiza o artigo científico de Claire Spottiswoode com Keith Begg e Colleen Begg.

A relação entre o pássaro-do-mel – também conhecido como “indicador-grande” – e os seres humanos começou assim a ser forjada há muito tempo. E não existe só em Moçambique, mas noutras regiões de África, uma vez que o pássaro-do-mel tem uma distribuição na natureza muito alargada, indo desde a Guiné-Bissau, o Senegal e a Nigéria até à Eritreia e Etiópia, passando pelo Quénia, Tanzânia, República Democrática do Congo, Angola e África do Sul.

Na Tanzânia, há cerca de dois anos uma outra equipa de cientistas estudou o recurso da etnia hadza aos serviços desta ave com o mesmo propósito. E no Quénia são conhecidos os estudos do ornitólogo Hussein Isack nos anos 80, nos quais concluiu que as populações humanas tinham mais hipóteses de encontrar mel se seguissem os pássaros-do-mel, às vezes mais de um quilómetro.

Os pássaros-do-mel agradecem a ajuda das pessoas para controlar as abelhas usando fumo e para abrir as colmeias, muitas vezes escondidas em buracos no interior das árvores, pelo que é necessário usar ferramentas para cortar os troncos. Além de evitarem boa parte das picadas das abelhas, as aves ficam assim com acesso à cera dos favos. E as pessoas agradecem-lhes a ajuda na procura de mel, uma vez que os pássaros-do-mel voam de árvore em árvore a indicarem a direcção de uma colmeia. Uma vez chegados à árvore onde está a colmeia, voam durante algum tempo sobre esse local. Ora esta colaboração permite que ambos, aves e humanos, obtenham recursos alimentares cheios de calorias.

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Favos de mel silvestre Claire Spottiswoode

“Embora os humanos usem muitas espécies como parceiros na procura de alimentos, incluindo falcões, cães e corvos-marinhos, esses indivíduos foram treinados ou domesticados especificamente para cooperarem. A relação entre o pássaro-do-mel e os humanos é notável por envolver animais em liberdade na natureza cujas interacções com os humanos provavelmente evoluíram através de selecção natural”, refere o artigo.

“O que João dos Santos descreveu foi o que agora designamos por 'mutualismo entre espécies'”, explica por sua vez Claire Spottiswoode num comunicado da Universidade de Cambridge. “Os mutualismos são cruciais em qualquer parte da natureza, mas, tanto quanto sabemos, a única parceria comparável entre animais selvagens e a nossa espécie para procura de alimentos envolve golfinhos que perseguem cardumes até às redes dos pescadores e, ao fazê-lo, conseguem apanhar mais para si próprios. Seria fascinante saber se os golfinhos respondem a chamamentos especiais dos pescadores, como afirmou Plínio, o Velho, há quase 2000 anos.”

Um “brrrr-hum” especial

Ora o trabalho da equipa de Claire Spottiswoode concluiu precisamente que a comunicação entre os pássaros-do-mel e os ajaua funciona nos dois sentidos. E que, de facto, as aves procuram chamar a atenção das pessoas (com os gritos “uí…trr…uí…trr”), e as pessoas também as chamam.

De forma geral, as populações africanas que usam a ajuda dos pássaros-do-mel anunciam a sua presença às aves com barulhos genéricos, por exemplo, gritando ou cortando madeira. Só que os ajaua fazem-no de maneira especial. “Na Reserva Nacional do Niassa (e, de forma mais abrangente, no Norte de Moçambique e no Sul da Tanzânia adjacente), os apanhadores de mel ajaua fazem um trinado alto seguido por um grunhido: ‘brrrr-hum’”, descreve o trabalho.

E o que se concluiu na investigação foi que os pássaros-do-mel deram informações fidedignas aos ajaua: 74,5% das colmeias encontradas – ou seja, 149 – tiveram a ajuda das aves, relata a equipa. Por outro, verificou-se que as aves conseguiam distinguir sons específicos que os apanhadores de mel moçambicanos lhes dirigiam de propósito, para solicitarem a sua colaboração. Tinha sido sobre esta vocalização específica dirigida aos pássaros-do-mel de que Keith Begg e Colleen Begg tinham falado a Claire Spottiswoode.

“Para confirmar que o ‘brrrr-hum’ é um som especializado para apanhar mel, entrevistámos 20 apanhadores de mel ajaua, e todos confirmaram que usam este som específico quando procuram mel e em mais nenhum outro contexto”, prossegue o artigo. “Quando lhes perguntámos porquê, responderam que o aprenderam com os seus pais e que é a melhor maneira de atrair um pássaro-do-mel e manter a sua atenção. Por isso, este som tem a potencialidade de assinalar aos pássaros-do-mel que um possível parceiro humano está especificamente à procura de mel e que tem os instrumentos, as capacidades e tempo para abrir a colmeia, o que muitos humanos não têm.”

Os investigadores quiseram ainda ver se o tal som específico produzido pelos apanhadores de mel moçambicanos surtia mais efeito do que outros sons na obtenção da ajuda das aves. E viram que sim – quando pediram a dois deles para andarem com gravações desse som e de outros dois sons usados como controlo da experiência (palavras arbitrárias gritadas e o chamamento de outra espécie de aves). Os dois voluntários da experiência fizeram 72 percursos de 15 minutos cada um, passando as gravações de um dos três sons durante sete segundos.

Com o tradicional “brrrr-hum”, as probabilidades de se ser guiado por um pássaro-do-mel passaram de 33% para 66% e as de encontrar uma colmeia de 17% para 54%, em comparação com os sons usados como controlo. “O chamamento ‘brrrr-hum’ mais do que triplicou as hipóteses de uma interacção bem sucedida, rendendo mel aos humanos e cera às aves”, sublinha Claire Spottiswoode.

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Mel silvestre apanhado Claire Spottiswoode

Mestre do engano

A mil quilómetros de distância dos ajaua na Reserva Nacional do Niassa, outro grupo étnico, os já mencionados hadza na Tanzânia, também usam sons específicos para recrutarem pássaros-do-mel – neste caso, um assobio melodioso, como relatou a equipa de Brian Wood, da Universidade de Yale (EUA), num artigo de 2014 na revista Evolution and Human Behavior. E isto levanta uma questão científica interessante.

“Adoraríamos saber se os pássaros-do-mel aprenderam esta variação nos sinais produzidos pelos humanos por toda a África, permitindo-lhes reconhecer os bons colaboradores entre as pessoas que vivem ao lado deles”, adianta a bióloga. “Estamos fascinados pela evolução do mutualismo entre os pássaros-do-mel e os humanos e, como próximo passo, queremos testar se os pássaros-do-mel juvenis aprendem a reconhecer sinais humanos locais, criando um mosaico da variação cultural dos pássaros-do-mel que reflecte a variação cultural dos seus parceiros humanos.”

Mas se o pássaro-do-mel tem maravilhado tanta gente desde o relato do frade João dos Santos (cerca de 1560-1622) em Ethiopia Oriental – livro com vastas descrições da biodiversidade e do património natural das regiões por onde o missionário passou em trabalho de evangelização e que conheceu grande divulgação na Europa devido a uma edição em latim de 1622 –, também coexiste nesta ave uma faceta mais negra, digamos assim.

“À semelhança do cuco, põe os ovos no ninho de outras aves e as suas crias eclodem equipadas na ponta do bico com uns ganchos afiados. Apenas com alguns dias de idade, os jovens pássaros-do-mel usam estas armas para matar os irmãos adoptivos à medida que eclodem”, explica Claire Spottiswoode. “Portanto, o pássaro-do-mel é um mestre tanto do engano e da exploração como da cooperação – um autêntico Jekyll e Hyde do mundo das aves.”

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