O Nobel da Injustiça

Escusado será dizer que andamos todos muito agastados por o Prémio Nobel da Física deste ano não ter contemplado o nosso venerado colega Tom Kibble. Ninguém o diz aos jornalistas, claro está, exercita-se o stiff upper lip, o "lábio superior inteiriçado" tão característico dos britânicos (linda metáfora, esta, para o hábito que os "bifes" têm de não deixar transparecer as emoções – em Portugal isto dava uma bela peixeirada).

E daí os cumprimentos untuosos aos vencedores, a infinita compreensão face ao júri do Nobel a braços com um bico-de-obra... Mas põe-se-lhes um pint de cerveja entre as mãos, e subitamente vem tudo ao de cima e a fumegar:

– What a bunch of assholes!

– It"s just a power trip to them.

– And who are these people anyway?

A verdade é que ficámos todos muito melindrados, como devem imaginar. Todos menos o próprio, talvez, por razões que se entenderão.

Ninguém gosta de ser acusado de mau perder, mas às vezes a verdadeira coragem está em ser capaz de criticar quando se saiu perdedor. O Prémio Nobel há muito que perdeu contacto com a realidade, especificamente na Física. A ciência é cada vez mais um esforço colectivo e colaborativo, mesmo nas áreas mais teóricas. Onde começa e acaba o contributo de cada um para aquilo que décadas mais tarde aparece nos tomos escolares é cada vez menos óbvio. No final as coisas podem parecer um ordenadíssimo ovo de Colombo, mas para quem lá andou à nora e a partir pedra a perspectiva é bem diferente.

O caso vigente diz respeito à partícula de Higgs, dita de Deus pela imprensa, eu chamo-lhe a partícula da Nossa Senhora da Agrela. Os três artigos que a previram apareceram independentemente em 1964, num período de três meses. Primeiro o artigo de Englert e Brout, depois o de Higgs, e finalmente o de Guralnik, Hagen e Kibble. Todos fazem uma conta completamente diferente. Todos são motivados por coisas que hoje não interessam nem ao menino Jesus. Todos acabam por chegar à conclusão que é agora vista como importante, mas com um nível de profundidade muito variável. Passados quase 50 anos, a partícula foi descoberta no CERN, não há santa como ela. E é aqui que começa a lotaria Nobel.

O prémio não pode ser atribuído postumamente, nem a mais de três pessoas. Além disso, a prioridade cronológica é vista como factor determinante, sem subtilezas de conteúdo. Na Física há sempre um conflito entre "pioneiros" e "colonos": os segundos chegam no fim, juntam uma vírgula, e acham que é tudo deles. Mas neste caso os três artigos são igualmente de desbravamento, sendo o terceiro o mais rematado. A justiça básica teria sido feita simplesmente mudando as regras, e laureando os três trabalhos.

Assim não o entendeu a Fundação Nobel. Portanto, quatro intervenientes ficaram de fora: os autores do terceiro artigo, e Robert Brout, que nos fez a desfaçatez de morrer em 2011. Moral da história: atrasas-te um mês para fazer melhor as contas, ou tens a lata de morrer antes do júri do Nobel se decidir, e não levas nada! O engraçado é que os autores na altura não discutiram a "prioridade temporal" porque nada daquilo lhes parecia importante. Um deles foi aconselhado a mudar de área de investigação se quisesse arranjar emprego e fazer carreira. O grande Heisenberg comentou: "Vocês não percebem patavina de Física." Ninguém queria ouvir falar daquilo, especialmente nos EUA. Cozinhava-se uma linda omelete de Colombo.

Uma conclusão se pode tirar de tudo isto: o Prémio Nobel, com as suas regras anacrónicas, é incapaz de representar com justiça as nuances e os detalhes históricos de qualquer descoberta científica. E se o que aconteceu ao meu colega é uma tremenda iniquidade, pior será quando o prémio for atribuído aos cientistas do CERN que detectaram a partícula. Milhares de pessoas oriundas de mais de 100 países contribuíram, mas só os líderes receberão louros, como é tradição nestes casos. Por regra, estes líderes são mais políticos do que cientistas. Há mesmo quem diga que são os piores representantes destes enormes grupos, invocando o adágio Shit rises to the top. Se a Fundação Nobel fizesse um sorteio entre os alunos de doutoramento, haveria mais integridade.

Voltando ao lugar onde labuto, à hora de almoço alguém lhe vai bater à porta – "Lunch?..." –, recebendo em troca um sorriso octogenário. E há razões para rir, sim senhor. Como cientistas "teóricos", a maior parte do que fazemos acaba no caixote do lixo: é a norma. De vez em quando, tipicamente pelas razões erradas, descobrimos coisas terrivelmente profundas, assustadoras, muito maiores do que qualquer um de nós. Dizem-nos então que estamos doidos e ameaçam-nos com uma acção de despejo dos nossos pergaminhos académicos. Meio século passa e afinal a ideia estava certa, a natureza despira-se à nossa frente, sem ninguém ter dado por isso na altura.

E depois ainda te dizem que só és agraciado com as alvíssaras suecas se há 50 anos escrevinhaste velozmente o que parecia ser mais um disparate, e tiveste o cuidado de não morrer nos entrementes. Pode ser uma enorme injustiça, mas lá que dá vontade de rir dá.

Físico teórico do Imperial College, Londres
 
 
 

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