O cérebro do primeiro macaco disse ao braço do segundo para se mexer e...

Investigadores conseguiram fazer com que o braço de um macaco executasse movimentos ordenados pelo cérebro de um outro macaco, ligado ao corpo do primeiro através de circuitos eléctricos.

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No filme Avatar, o corpo da personagem da esquerda é comandado à distância pelo cérebro de um ser humano Fox Pictures/Reuters

Pandora, lua do planeta Polifemo, no sistema estelar Alfa do Centauro, habitado pelos Na'vi, humanóides inteligentes de pele azul com três metros de altura. O corpo de um desses seres, que jazia imóvel, como se estivesse a dormir, anima-se de repente. Mas este não é um Na'vi como os outros; é um híbrido de Na'vi e humano – um “avatar” – e o seu corpo está a ser controlado remotamente pelo cérebro de um ex-fuzileiro paraplégico que se encontra a bordo de uma nave espacial que anda por ali. Como a atmosfera de Pandora é tóxica para os humanos, mas os seus recursos naturais lhes são indispensáveis, foi desenvolvida uma interface cérebro-corpo que lhes permite descer à superfície daquela lua vestindo mentalmente a pele (e o corpo) de um Na'vi criado para o efeito por engenharia genética.

Provavelmente reconheceu a trama de base do filme Avatar, de James Cameron. Mas o que provavelmente ainda não sabe é que este cenário de ficção científica, em que um homem que ficou paralisado na sequência de um traumatismo recupera as suas capacidades físicas perdidas através de um outro ser, igualmente de carne e osso, foi agora conseguido pela primeira vez (ainda que com um desempenho mais modesto) num laboratório daqui da Terra. Não com humanos e Na’vi, mas com macacos Rhesus, num trabalho realizado por investigadores do Centro de Reparação do Sistema Nervoso da Escola de Medicina da Universidade de Harvard, em Boston (EUA). Os seus resultados foram publicados esta terça-feira na revista Nature Communications.

Já existem alguns exemplos de experiências com pessoas paralisadas em que estas conseguiram comandar com a mente, através de um computador, os movimentos de um braço robotizado. Um dos mais espectaculares, anunciado em Maio de 2012, foi o caso de uma mulher, que ficou tetraplégica na sequência de um AVC, e que conseguiu assim, pela primeira vez em mais de 15 anos, beber sem ajuda o café contido num cantil.

Como? Imaginando que estava a mexer o seu próprio braço e que, com a sua própria mão, segurava no cantil e o levava à boca – o que fez com que o braço robotizado, ao qual a doente estava ligada através de um implante cerebral, executasse os gestos que ela queria. Concretamente, a intenção motora da doente (ou melhor: os impulsos eléctricos disparados pelos seus neurónios quando ela teve a intenção de beber) foi transmitida pelo implante a um programa de computador que a transformou em movimentos do braço artificial.

Ziv Williams e colegas foram agora mais longe do que nessa experiência. Não utilizaram um braço mecânico para executar os movimentos intencionais de um humano, mas o braço de um macaco Rhesus que, tal como o avatar do filme, só se animava quando era comandado pela vontade de um outro macaco Rhesus, cujo cérebro estava directamente ligado à espinal medula (e ao braço) desse seu “avatar” por uma prótese microelectrónica. E não se limitaram apenas a executar um único movimento.

“Este trabalho descreve um resultado muito importante”, comenta Christopher James, especialista de engenharia biomédica da Universidade de Warwick (Reino Unido), que não faz parte da equipa. “Já sabíamos que era possível criar interfaces cérebro-máquina e extrair informação do cérebro, embora pouco elaborada. Mas este trabalho é diferente: aqui, os cientistas mostraram que conseguem extrair do cérebro de um primata as subtilezas de um ‘gesto intencional’, desemaranhar essa informação e transmiti-la à espinal medula de um outro primata, ‘injectando’ essa informação no sistema de maneira que esse segundo primata execute um movimento conforme a vontade do primeiro.”

Mestre e avatar

Todo o trabalho (que incluiu sessões de treino e de execução efectiva das tarefas) consistiu em apresentar ao primeiro macaco (designado “mestre” pelos cientistas) dois alvos circulares num ecrã de computador para daí extrair, com base na actividade de um pequeno número de neurónios pré-motores do córtex cerebral desse macaco – e portanto, antes da execução de qualquer gesto da sua parte –, a informação que permitia prever, através de um software e em tempo real, qual era o alvo que esse macaco mais provavelmente tencionava atingir com o cursor. Essa previsão era então transmitida a um segundo macaco, designado “avatar”, que tinha sido previamente paralisado através de drogas, para impedir a sua interferência – e cujo braço, conforme a escolha prevista do “mestre”, apontava então para um dos dois alvos.

Claro que a previsão da intenção do “mestre” não foi perfeita, mas mesmo assim, as taxas de sucesso, ou seja, a percentagem de tentativas em que o braço do segundo macaco atingiu efectivamente o alvo escolhido pelo primeiro, situaram-se, em média (e conforme o tipo de experiência), entre 65% e 90%, escrevem os autores. Diga-se ainda que, de cada vez que o macaco “mestre” conseguia comandar o braço do macaco “avatar” para o alvo que ele próprio tinha escolhido, era devidamente recompensado com um pouco de sumo de fruta administrado através de um tubinho colocado à sua frente.

“O nosso trabalho mostra que é possível utilizar a actividade neural para controlar um braço paralisado e deslocá-lo para diferentes alvos”, disse ao PÚBLICO Ziv Williams. “O que esperamos é ser um dia capazes de implantar dispositivos semelhantes em pessoas paralisadas para lhes permitir recuperar o controlo motor intencional não de um braço robotizado mas dos seu próprios membros. Mas isso pode não ser para já, porque antes precisamos de mostrar que podemos controlar os movimentos das extremidades em múltiplas direcções e de provar que este tipo de prótese cortico-espinal não apresenta riscos para os doentes.” Isso corresponderia a criar literalmente um bypass por cima da lesão medular, restabelecendo a comunicação nervosa entre o cérebro da pessoa e o resto do seu corpo.

Mas significa isto que um dia também poderá ser possível a mente de uma pessoa controlar as acções de outra à distância? “Pode haver quem receie que estes resultados tenham como consequência a possibilidade de alguém vir a controlar com a mente o corpo de outrem, mas esses receios são totalmente infundados, uma vez que as pessoas não incapacitadas do ponto de vista motor continuarão sempre a manter o controlo das suas extremidades”, esclarece Christopher James. “E não há risco de o perderem contra a sua vontade nos próximos tempos.”

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