O Antropoceno veio para ficar?

Devido às enormes transformações provocadas no planeta pelos seres humanas, a nossa era geológica deveria ser chamada “Antropoceno”, ou seja, a era dos humanos.

Dizem-nos os meios de comunicação social que estamos a viver no Antropoceno, uma nova era geológica marcada pelo impacto dos seres humanos no planeta terra.

O termo Antropoceno tem-se vindo a tornar cada vez mais popular tanto entre cientistas como nas humanidades e nas ciências sociais. Nos Estados Unidos, podemos agora participar em conferências sobre “Repensar Questões Raciais no Antropoceno”, ou “O Feminismo do Antropoceno” e ler livros e artigos sobre A Tarefa da Filosofia no Antropoceno,[1] ou A Antropologia na Era do Antropoceno, para mencionar apenas alguns dos muitos exemplos. Tanto a revista The Economist como o jornal Huffington Post deram-nos as boas-vindas ao Antropoceno e a secção Opinionator do New York Times procurou mesmo ensinar-nos a morrer nesta nova época.

Mas terá toda esta publicidade sobre o Antropoceno algum fundamento? No que diz respeito à ciência, teremos que esperar pelo veredicto final. A história do termo remonta a um artigo que o químico e vencedor do Prémio Nobel, Paul Crutzen, escreveu com Eugene Stoermer em 2000 defendendo que, devido às enormes transformações provocadas no planeta pelos seres humanos, a nossa era geológica deveria ser chamada “Antropoceno”, ou seja, a era dos humanos.

A ideia de Crutzen e de Stoermer adquiriu um tal número de apoiantes que a Comissão Internacional de Estratigrafia (International Commission on Stratigraphy, ou ICS) criou o Grupo de Trabalho do Antropoceno. A função deste Grupo é considerar a possibilidade de que o Holoceno, a era geológica que teve início com o fim da última Era Glaciar há cerca de 11700 anos, poderá ter terminado e dado lugar ao Antropoceno. Não existe consenso sobre quando terá começado este novo período: alguns apontam para a expansão da agricultura, há aproximadamente 5000 anos, como a data de início; outros para a chegada dos Europeus ao continente americano; outros para o começo da Revolução Industrial no século dezoito; e outros ainda para as origens da era nuclear em 1945. O Grupo de Trabalho irá apresentar as suas recomendações iniciais em 2016 mas qualquer proposta e mudança terão que ser aprovadas pela ICS e pela União Internacional das Ciências Geológicas (International Union of Geological Sciences). Ao que parece, ainda demorará algum tempo até sabermos ao certo se estamos mesmo a viver no Antropoceno.

Apesar do peso que uma deliberação sobre o tempo geológico necessariamente acarreta, a decisão científica de batizar ou não a nossa era de “Antropoceno” não determina necessariamente o destino deste termo. Mesmo que esta designação seja rejeitada pela ICS, a expressão continuará provavelmente  a ser utilizada não só em meios académicos mas também pela comunicação social. O Antropoceno veio para ficar, quer os geólogos queiram, quer não. Mas será que nós, leigos, nos devemos regozijar com chegada desta nova época?

À primeira vista, parece que não temos outra escolha senão reconhecer que estamos no Antropoceno. O aquecimento global e o iminente desaparecimento de vários países formados por ilhas, a crescente poluição atmosférica que deixa cidades como Paris ou Beijing às escuras quando há mais smog, a contaminação dos cursos de água por poluentes que envenenam todos os organismos à sua volta, a acidificação dos oceanos e a extinção de inúmeras espécies de seres vivos durante as últimas décadas são apenas os sinais mais óbvios do tremendo efeito dos seres humanos na terra. Não existem precedentes para tamanha hecatombe provocada pela humanidade.

O termo Antropoceno procura realçar esta destruição do planeta. O choque de nos apercebermos que estamos a alterar a constituição geológica da terra levar-nos-á talvez a abandonar a nossa habitual complacência. Poderá soar o alarme para aqueles que, apesar de preocupados de forma abstrata com o ambiente, se encontram absorvidos no seu dia-a-dia, alimentado por combustíveis fósseis.

O Antropoceno adquire assim uma função performativa: a sua utilidade estratégica como ponto de convergência de diversos setores do movimento ambientalista, bem como forma de pressionar a classe política a agir com celeridade no que diz respeito à proteção do meio ambiente, ultrapassa um enquadramento puramente científico. Trata-se de convocar a ideia de justiça ambiental, não só para os humanos mas também para todos os outros seres vivos, que estão a pagar pelos nosso erros.

No entanto, a expressão “Antropoceno” oculta várias questões problemáticas. Por um lado, culpar o “antropos”, nomeadamente, toda a espécie humana, pela crise ambiental não leva em conta as profundas assimetrias que marcam a história e a geopolítica do homo sapiens. Um pescador que vive do que apanha com o seu pequeno barco a remos numa ilha em Moçambique ou um agricultor que pratica agricultura de subsistência no Sri Lanka não são certamente tão responsáveis pelo Antropoceno como um americano ou um europeu da classe média. Aliás, as populações mais pobres, que não usufruem dos confortos materiais conseguidos à custa da degradação da natureza, são aquelas que mais sofrem com os efeitos da poluição e do aquecimento global, já que não possuem os meios para mitigar estes flagelos.

Mas a maior desvantagem do Antropoceno é que o termo reafirma a húbris da humanidade. Ao considerarmo-nos a espécie que determina o destino de todo o planeta, não estaremos a cair na falácia do excecionalismo humano, a causa principal da situação em que nos encontramos? Não haverá um certo orgulho perverso na nossa capacidade quase divina de definir o que se passará em toda a terra? Por outras palavras, ao decidirmos que entrámos na era do Antropoceno, não estaremos a rejubilar pelo nosso poder, mesmo que este nos cause alguns dissabores? Afinal, dizem alguns, se somos suficientemente inteligentes para destruir quase todo o planeta, também teremos a sagacidade necessária para o salvar.

O reverso desta húbris desmesurada é o fatalismo que muitas vezes acompanha as reflexões sobre o Antropoceno. Talvez o nosso impacto no mundo seja já demasiado significativo para podermos voltar atrás. Ou talvez os humanos não sejam capazes de fazer outra coisa senão destruir-se a si próprios e a todos os outros habitantes da terra. Ao usarmos esta expressão, não nos estaremos a resignar ao status quo e a aceitar que cada um de nós é impotente para travar uma força geológica tão poderosa como a espécie humana?

Quer adoptemos estrategicamente o termo Antropoceno, quer o rejeitemos pela sua conivência com algumas das contradições que levaram à crise ambiental, deveríamos parar para refletir sobre a nossa breve passagem por este planeta. A terra girou à volta do sol sem nós durante milhões de anos e não há nenhuma razão para duvidarmos que continuará a fazê-lo depois do nosso desaparecimento. Será o Antropoceno o legado que gostaríamos de deixar no mundo? Queremos realmente viver numa era geológica engendrada pelos seres humanos? Em vez de nos concentrarmos em discussões intermináveis sobre o Antropoceno, talvez fosse melhor deixá-lo para trás, de uma vez por todas.

[1] The Task of Philosophy in the Antropocene, volume que será publicado na série Future Perfect da editora Rowman and Littlefield International.

 

 

 

 

Georgetown University, www.patriciavieira.net
 

 

 
 

 

 

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