Nem com uma memória fora de série somos imunes às falsas memórias

Os mecanismos responsáveis pela distorção da memória poderão ser inerentes à forma, relativamente maleável e falível, como o nosso cérebro regista os acontecimentos da nossa vida.

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As memórias inscritas nos nossos neurónios são o resultado de processos maleáveis e falíveis Reuters/Universidade de Tóquio

Cientistas norte-americanos submeteram a testes que geram falsas memórias um grupo de pessoas cujas capacidades mnemónicas são tão extraordinárias que conseguem lembrar-se, décadas mais tarde, de ínfimos pormenores da sua vida passada. E constataram que, ao contrário do que se poderia pensar, essas pessoas são muito — e por vezes até mais — susceptíveis de se convencerem, erradamente, de ter visto ou ouvido algo que nunca viram nem ouviram. Os resultados deste estudo foram publicados na edição desta semana da revista Proceedings of the National Academy of Sciences.

Elizabeth Loftus — pioneira do estudo das falsas memórias — e colegas, da Universidade da Califórnia (EUA), recrutaram 38 voluntários com dotes de memória normais e 20 dotados de “hipertimésia” ou “memória autobiográfica altamente superior” (HSAM, na sigla em inglês).

A hipertimésia, descrita pela primeira vez em 2006, faz com que estas pessoas consigam lembrar-se de pormenores dos eventos de cada dia da sua vida desde que eram crianças, incluindo a data e o dia da semana em que aconteceram. “No que respeita a pormenores verificáveis, as pessoas com HSAM acertam 97% das vezes”, escrevem os cientistas. “Conseguem lembrar-se melhor do que aconteceu num dado dia, há dez anos, do que a maior parte [de nós] se lembra do que aconteceu há um mês.”

A hipertimésia é diferente dos outros tipos de memórias superiores, explicam ainda os cientistas. Em particular, as pessoas com HSAM não têm capacidades excepcionais de aprendizagem. O que as distingue é apenas a sua espectacular memória “autobiográfica” — ou seja, a precisão e a exactidão com que se lembram de tudo o que lhes aconteceu na vida.

Miragens mentais
Seja como for, a descoberta da hipertimésia levou os especialistas a perguntar se as pessoas com HSAM seriam ou não imunes às falsas memórias. E foi isso que a equipa quis agora testar. “De certa forma”, escrevem os autores, “esta capacidade parece contradizer o que se sabe acerca dos processos reconstrutivos, falíveis e maleáveis, subjacentes à memória das pessoas com capacidades mnemónicas normais”.

Para fazer o estudo, a equipa realizou, juntos dos 58 participantes com e sem hipertimésia, vários testes que estimulam a produção de falsas memórias. Um deles consiste em enunciar listas de palavras relacionadas entre si — poderiam ser “cama”, “repouso”, “cansado”, “ressonar”, etc. — e em pedir mais tarde aos participantes para se lembrarem do maior número possível de palavras ouvidas. Acontece então que uma palavra como “sono” surge tão frequentemente nas respostas como as diversas palavras da lista... embora nunca tenha sido enunciada durante o teste. Isto porque a ideia de sono está implícita em todas as palavras que os participantes ouviram.

Num outro teste, o “gerador” de falsas memórias consistiu em apresentar uma série de imagens, seguida, algum tempo depois, de frases faladas que confundem a memória dos participantes e os levam a acreditar que viram a imagem de um objecto que apenas foi referido oralmente.

Um terceiro teste ainda consistiu em sugerir aos voluntários que um dado acontecimento fora filmado — neste caso, o preciso instante em que o voo 93 da United Airlines se esmagou no solo da Pensilvânia, a 11 de Setembro de 2001. Embora esse momento trágico dos ataques da Al-Qaeda nunca tenha, na realidade, sido registado em vídeo (as primeiras imagens filmadas foram dos destroços do avião, já a arder no chão), a mera sugestão de que o foi é suficiente para as pessoas ficarem convencidas de ter visto um vídeo inexistente.

Somos todos falíveis
Conclusão da equipa de Loftus: a extraordinária memória dos participantes com hipertimésia não é de todo imune às distorções. Não foram detectadas, em nenhuns dos testes, diferenças significativas entre a taxa de falsas memórias evocadas pelas pessoas com uma memória normal e a taxa de falsas memórias evocadas pelas pessoas com HSAM. Mais ainda: no segundo teste (o das imagens fixas), os voluntários dotados das mais poderosas hipertimésias tiveram mesmo tendência a inventar mais falsas memórias do que os participantes com hipertimésias menos pronunciadas.

“Seja qual for a origem da sua capacidade excepcional em termos de memória autobiográfica, ela não impede [as pessoas com HSAM] de sofrer distorções da memória”, notam os cientistas. O seu estudo, acrescentam, “sugere que os mecanismos de reconstituição da memória que produzem distorções (...) são fundamentais e generalizados nos seres humanos”.

A confirmarem-se, estes resultados poderão ter importantes implicações, nomeadamente na área da justiça, onde a contaminação da memória das testemunhas já teve graves consequências no passado, alertam os cientistas.
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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