Nas pegadas de Giotto e Huygens

A Roseta é provavelmente a missão planetária mais audaciosa de sempre da Agência Espacial Europeia.

Trinta anos após a missão Giotto ao cometa Halley (1986), mais de 20 anos após a luz verde para o projecto, e no final de dez anos de viagem pelo sistema solar até atingir o seu objectivo – incluindo passagens pela Terra, por Marte e dois asteróides (2867 Steins e 21 Lutetia). Até atingir a superfície de um cometa, a extensão do projecto Roseta>/i> confundia-se já com a carreira de inúmeros cientistas e engenheiros que trabalharam na sua construção e operação, no que será talvez a medida mais apropriada para avaliar a dimensão dos eventos de ontem [quarta-feira].

A <i>Roseta</i> é provavelmente a missão planetária mais audaciosa de sempre da Agência Espacial Europeia (apenas comparável em ambição à missão Giotto e à Huygens, que pousou na lua Titã em Janeiro de 2005), não só pelo seu valor monetário, mas antes de mais por ter envolvido um desafio tecnológico tão complexo e com tão poucos dados disponíveis à partida  – seja sobre a massa, a forma ou as características do solo do seu objecto de estudo.

Com efeito, a exigência da missão reflectiu-se, desde o primeiro momento, num requisito fundamental: a construção de um módulo de aterragem (o File) capaz de lidar com o enorme grau de incerteza existente à data sobre as propriedades da superfície de um cometa. Seria esta sólida como o gelo ou coberta de poeira como em algumas zonas da superfície lunar? Uniforme, ou repleta de pedregulhos? Plana, ou inclinada? O leque alargado de possibilidades resultou no desenho de um sistema capaz de lidar com quase todas as circunstâncias, constituído por foguetes, por arpões e por brocas colocadas nos extremos do trem, de forma a assegurar a sua fixação, por vários meios redundantes, à superfície do cometa.

O dia de ontem mostrou, todavia, que por vezes nem os mecanismos mais sofisticados e robustos estão preparados para sobreviver ao embate com a realidade. A poucas horas da aterragem, soube-se que os foguetes do File não estariam operacionais, o que eliminava alguma da robustez do sistema, não pondo ainda assim em causa o sucesso na aterragem – desde que os restantes sistemas operassem com normalidade. Restava esperar pela concretização com sucesso dos outros eventos críticos do dia, sobretudo a separação entre a sonda Roseta e o File, e mais tarde o restabelecimento de comunicações entre os dois veículos.

Uma vez ultrapassados estes obstáculos, às 15h restava apenas pela frente o grande momento. A tensão no centro de operações da ESA, em Darmstadt (Alemanha), tornou-se primeiro visível, e depois manifestamente incomodativa: estaria a missão à altura das suas responsabilidades?

Uma primeira resposta surgiu às 17h05, com a aparente detecção da activação do sistema de arpões, e a subsequente festa na sala de controlo de missão. Pouco depois a alegria transferia-se para a sala de convidados, seguindo-se o champanhe, acompanhado dos discursos dos principais responsáveis pelo sucesso.

A essa hora permaneciam ainda, no entanto, algumas incertezas nos corredores do controlo de missão: os arpões tinham sido activados, mas o cabo a eles preso tinha de seguida sido enrolado na totalidade, indicando que a sua operação podia ter falhado; a produção de energia eléctrica pelos painéis solares do File variava mais do que o esperado, indicando que a aterragem não podia ser dada como um facto consumado; e as comunicações com a Roseta eram inesperadamente intermitentes, o que reforçava essa ideia. O sucesso não era garantido. A missão podia afinal estar em risco.

A conferência de imprensa que se seguiu ao final do dia já veio desanuviar de alguma forma o ambiente, esclarecendo o essencial: a ESA tornou-se ontem [quarta-feira], sem dúvida, a primeira agência a pousar num cometa. Resta agora acompanhar os próximos dias, e meses, para confirmar se a este sucesso efémero se sucede a obtenção de dados preciosos para a compreensão da evolução do sistema solar, uma tarefa para a qual a Roseta terá a ajuda de novas e ambiciosas missões europeias, a lançar ao longo da próxima década. Trata-se de um desafio que a indústria europeia – incluindo, cada vez mais, a indústria portuguesa – se encontra mais do que nunca habilitada a cumprir.

 Administrador e co-fundador da empresa aeroespacial portuguesa Spin.Works

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