Na língua deste povo nómada da Malásia há todo um mundo de cheiros

Ao contrário dos ocidentais sofisticados e modernos, os jahai, um povo de caçadores-recolectores asiáticos, falam uma língua que lhes permite descrever os odores com muito maior precisão do que nós.

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As línguas europeias não tem uma palavra para descrever o cheiro das rosas Nuno Ferreira Santos

Os cheiros são das coisas mais evocativas que há para o ser humano. Ao longo da nossa vida, continuamos a ser capazes de identificar o contexto em que, em pequenos, cheirámos os odores mais subtis. Mas quando queremos descrever um cheiro, as palavras não nos vêm assim tão facilmente à cabeça. Ao contrário do que acontece com as cores, cujos tons e intensidades variáveis não nos impedem de as nomear utilizando palavras abstractas como “vermelho”, “azul”, “amarelo” e por ai fora, é-nos difícil encontrar as palavras certas para os cheiros.

Esta constatação levou os psicólogos a postular que essa incapacidade linguística era universal, porque os nossos centros cerebrais da linguagem simplesmente não tinham acesso às nossas representações mentais dos cheiros. Mas agora, dois cientistas vêm pôr cobro a esta ideia, concluindo que a dificuldade em transpor os cheiros em palavras é cultural e não biológica.

A questão, escrevem a psicóloga Asifa Majid, da Universidade Radboud em Nijmegen (Holanda), e o linguista Niclas Burenhult, da Universidade de Lund (Suécia), na última edição da revista Cognition, é que a maior parte dos estudos tem sido feita com voluntários de língua inglesa, que são péssimos a descrever odores. “Quando lhes apresentam [os cheiros de] objectos familiares do dia-a-dia, tais como o do café, da manteiga de amendoim ou do chocolate, as pessoas comuns apenas nomeiam correctamente 50% desses cheiros”, lê-se no artigo. “Se tivessem o mesmo nível de desempenho com objectos visuais, seriam diagnosticadas como afásicas e referidas para tratamento médico.”

Esta dificuldade também surge em falantes de línguas latinas como o português e em muitas outras. “Tanto quanto sabemos, esta dificuldade também se verifica nas línguas romances”, disse Majid ao PÚBLICO. “E o mesmo parece ser o caso de todas as línguas europeias modernas.”

Porém, já havia, “escondidos na literatura científica”, indícios de que isso podia não verificar-se noutras culturas – e de que as línguas de certos povos indígenas de África e da América latina possuíam elaborados léxicos de cheiros.

Os jahai, cuja língua Niclas Burenhult estuda há anos, são um desses povos. Perdidos nas zonas montanhosas da selva tropical, na fronteira entre a Malásia e a Tailândia, são actualmente pouco mais de milhar e meio e a sua língua, que não tem forma escrita, está ameaçada de extinção. Ora, para descrever as qualidades dos “cheiros primários”, por assim dizer, estes caçadores-recolectores nómadas utilizam uma dúzia de palavras abstractas. Saber nomear os cheiros com precisão é-lhes essencial, não só nos seus rituais como para alertarem os outros para diversos perigos, escrevem os cientistas.

Por exemplo, têm uma palavra (“ltpit”) para descrever o odor de várias flores e frutos maduros, do perfume, do sabão, de certas madeiras aromáticas – e também o do binturong, um pequeno mamífero carnívoro do tipo da gineta (que, segundo fazem notar os autores, a Wikipédia refere como tendo um característico cheiro a pipocas…). Uma outra palavra específica serve-lhes para o cheiro do petróleo, do fumo, dos dejectos dos morcegos e das grutas em que vivem, de certas espécies de centopeias, da raiz do gengibre selvagem. E todas elas são tão abstractas como as palavras “vermelho” ou “azul”, que nós utilizamos para nomear as cores.

Os dois cientistas quiseram por isso testar se os jahai seriam ou não mais certeiros do que os anglófonos a nomear os cheiros. Recrutaram dois grupos semelhantes de dez voluntários jahai e dez norte-americanos e apresentaram a cada um dos participantes a mesma série de cheiros e de cores, perguntando-lhes, conforme o caso, “que cheiro é este?” ou “que cor é esta?”. A seguir, compararam o comprimento das respostas obtidas, o tipo de resposta e determinaram ainda até que ponto as respostas dadas pelos falantes da mesma língua eram consensuais.

O cheiro da canela
Os resultados falam por si: contrastando com o mau desempenho dos anglófonos, os jahai conseguiram nomear os cheiros com a mesma concisão com que nomeavam as cores e o consenso nas suas respostas foi da mesma ordem que para as cores. E ao passo que os jahai utilizavam as suas palavras abstractas, os norte-americanos recorriam a frases descritivas que associavam o cheiro a um objecto (“cheira a banana”, “cheira a rosas”) ou a palavras subjectivas como “nojento” ou “agradável”.

Quanto ao comprimento das respostas, as dos anglófonos foram cinco vezes mais extensas – ou seja, mais hesitantes – do que as dos jahai. E isto apesar de os cheiros apresentados serem todos familiares para um ocidental, o que nem sempre era o caso para os jahai. Para tentar descrever o cheiro a canela, escrevem os autores, os anglófonos utilizaram palavras como “apimentado”, “doce”, “rebuçado”, “fumado”, “comestível”, “vinho” e outras ainda.

Resumindo, tal como acontece com as cores (para nós e para os jahai), o seu léxico de odores permite aos jahai identificarem as semelhanças intrínsecas entre os cheiros mais diversos – em vez de, como os ocidentais, se ficarem pelos pormenores sem importância – e por vezes confusos e vagos – que os distinguem. É como se nós cheirássemos a árvore e os jahai a floresta, por assim dizer.

Os jahai não são os únicos a possuir um vocabulário de cheiros, explica-nos ainda Majid. A cientista está neste momento a liderar um grande projecto de estudo da linguagem dos cheiros noutras culturas do mundo.
 
 
 
 

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