Há parasitas intestinais que influenciam a fertilidade das mulheres

Pela primeira vez, uma equipa de cientistas estabeleceu uma ligação entre certos parasitas nos intestinos das mulheres e a reprodução humana – um estudo que nos leva até à floresta amazónica e à sociedade dos tsimané.

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Família alargada dos tsimané, em que cada mulher tem em média nove filhos Michael Gurven
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Uma família tsimané Michael Gurven
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Parasita (visto ao microscópio) que se prende à parede dos intestinos e que agora se sabe que reduz a fertilidade feminina Universidade James Cook

A antropóloga norte-americana Melanie Martin e o seu marido já viviam há alguns meses entre uma população de caçadores-horticultores na Amazónia boliviana – os tsimané – quando, em Novembro de 2012, decidiram que tinha chegado a altura de terem filhos. Para sua grande surpresa, Melanie Martin ficou grávida muito pouco tempo depois. Quando regressou aos Estados Unidos, comentou com os colegas que talvez a exposição aos diferentes parasitas na floresta da Amazónia a tivesse ajudado a engravidar. O feliz acontecimento levou a que a hipótese de uma ligação entre a fertilidade feminina e a infestação por parasitas intestinais fosse explorada – e agora, na edição desta sexta-feira da revista Science, a antropóloga e os colegas concluíram que essa associação existe realmente.

Melanie Martin, da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, integra uma equipa de cientistas norte-americanos e bolivianos que têm estudado, desde 2002, a saúde e a história de vida dos tsimané. Este projecto de investigação inclui antropólogos, bioquímicos e médicos. Melanie Martin participou nele, sendo co-autora do artigo agora publicado, mas o seu projecto principal de investigação era outro: estava a fazer tese de doutoramento sobre os hábitos de amamentação, alimentação e a saúde materno-infantil nos tsimané. Para tal, viveu em nove aldeias dos tsimané, perto da cidade de San Borja, no centro da Bolívia.

Os tsimané dedicam-se ao cultivo em pequena escala de milho, mandioca, bananas, além da caça e da pesca. Os cerca de 9000 que existem vivem em 80 pequenas aldeias, cada uma com 50 a 150 pessoas. As suas aldeias não têm electricidade nem água canalizada, e as casas são construídas com a madeira da floresta tropical e os telhados são feitos com folhas entrelaçadas. As aldeias vão mudando de sítio, uma vez que os tsimané são semi-sedentários.

Cultural e linguisticamente, são distintos de outros grupos indígenas que vivem na proximidade. Algumas aldeias têm escolas, onde o ensino é ministrado em espanhol e na língua tsimané. Apenas 5% das mulheres utilizam métodos contraceptivos, que aliás não estão facilmente disponíveis. A taxa de nascimentos é, em média, de nove filhos por mulher.

Estava Melanie Martin já nos Estados Unidos a trabalhar na sua tese de doutoramento sobre os tsimané (concluída este ano) quando, tendo em conta a sua história pessoal, lhe ocorreu a ideia na base da descoberta agora anunciada. “Eu tinha estudado imunologia, parasitologia e medicina evolutiva. Sabia que tanto a gravidez como muitos parasitas podem originar respostas de linfócitos T reguladores, que inibem o sistema imunitário. Sabia também que nalguns invertebrados os parasitas podem aumentar a reprodução”, conta a antropóloga ao PÚBLICO.

Portanto, certos parasitas (mais exactamente, alguns vermes helmintes) têm efeitos no sistema imunitário semelhantes a algumas alterações imunitárias ocorridas durante a gravidez, reduzindo as respostas inflamatórias que possam impedir a gravidez. Melanie Martin falou da sua ideia a Aaron Blackwell, também da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, que se interessou pelo estudo da associação entre parasitas e reprodução humana.

Resultado surpreendente
Os investigadores foram então testar a hipótese de as infestações por vermes intestinais aumentarem a fecundidade, olhando para os dados que já tinham vindo a recolher junto dos tsimané. “Começámos este projecto em 2002, mas para este trabalho usámos dados recolhidos a partir de 2004, data em que começámos a fazer análises sistemáticas aos parasitas fecais”, diz-nos Aaron Blackwell, o primeiro autor do artigo na Science.

Nos tsimané, 70% da população está infestada por vermes intestinais. As infestações mais comuns (cerca de 56% da população) são pelos vermes Ancylostoma duodenale e Necator americanus, que pertencem ao grupo dos ancilóstomos (em inglês chamam-se hookworms, ou seja, “vermes com ganchos”, pois têm uma espécie de ganchos na “boca” para se fixarem às paredes intestinais do hospedeiro). A segunda infestação mais comum (entre 15 e 20% da população) é pelos vermes Ascaris lumbricoides, mais conhecidos por lombrigas. No entanto, a maioria dos tsimané adultos ignora estar infestados por estes vermes e não tem sintomas clínicos.

Para este artigo, os autores analisaram os dados de 986 mulheres tsimané recolhidos durante nove anos. Os resultados foram surpreendentes: os cientistas descobriram efeitos opostos para os dois tipos de parasitas. As lombrigas aumentavam a taxa de reprodução, enquanto os ancilóstomos a diminuíam.

As lombrigas surgiam associadas a uma primeira gravidez mais cedo na vida das mulheres e a intervalos menores entre gravidezes. Esta associação diminui significativamente com a idade, mas, ainda assim, as previsões da equipa baseadas em modelos matemáticos indicam que uma mulher com infestações persistentes ao longo da vida pode ter mais dois filhos do que uma mulher sem parasitas.

Pelo contrário, os ancilóstomos estavam associados a uma primeira gravidez mais tardia, ao mesmo tempo, reduziam a probabilidade de engravidar ao longo de toda a vida. Os modelos matemáticos sugerem que as mulheres com ancilóstomos nos intestinos terão, em média, menos três filhos do que mulheres sem parasitas.

“Quando analisámos os dados, o que nos surpreendeu mais foi a extensão do efeito que a infestação tem”, diz-nos Aaron Blackwell. “Não tínhamos previsto encontrar alterações tão grandes na fertilidade. Por isso, fizemos um grande esforço por eliminar outras possibilidades de explicação para esta associação, antes de concluir que se devia realmente a um efeito da infestação por vermes”, acrescenta Aaron Blackwell, referindo-se à exclusão de factores como o estado geral de saúde, a localização da aldeia, a estação do ano e o uso de medicação antiparasitária. Mas as conclusões mantiveram-se.

Como se explicam então os resultados? Os investigadores apontam duas razões possíveis para o efeito oposto das lombrigas e dos ancilóstomos na reprodução humana. As lombrigas poderão promover a fertilização do ovócito e a implantação do embrião no útero, porque a sua presença nos intestinos das mulheres desencadeia um efeito semelhante à resposta imunitária existente na gravidez. Quanto aos ancilóstomos, têm um custo fisiológico mais elevado do que as lombrigas: provocam uma redução no índice de massa corporal e dos níveis de hemoglobina no sangue, efeito não observado no caso das lombrigas.

A equipa vai continuar a estudar os tsimané e os seus modos de vida e também a aprofundar como é que os parasitas intestinais interferem na fertilidade humana. “Planeamos continuar o estudo das alterações imunitárias associadas às infestações por vermes”, frisa Aaron Blackwell.

Porém, os cientistas esperam que os resultados venham a ter aplicações práticas. “Estes resultados sugerem que se investigue o papel da imunidade nos problemas de infertilidade e se procurem tratamentos que se assemelhem aos efeitos benéficos provocados pelos parasitas na fertilidade”, refere o investigador. “Não tenho conhecimento de tratamentos destes para a fertilidade. Como antropólogos, estudamos as pessoas e a sua ecologia. Desenvolver tratamentos está fora do nosso trabalho, mas esperamos que este artigo inspire alguém a trabalhar nesta possibilidade.”

Texto editado por Teresa Firmino

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