Há artigos científicos que são belas adormecidas e um dia acordam

Ninguém lhes deu importância quando foram publicados, mas muitos anos depois ficaram famosos de repente. Feito o primeiro grande estudo sobre as “belas adormecidas” da publicação científica.

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Albert Einstein publicou em 1935 um artigo que ficou esquecido durante 59 anos AFP

São como belas adormecidas, mas não se está a falar de nenhuma princesa que entra num sono profundo, devido ao feitiço de uma bruxa, e é acordada cem anos depois pelo beijo de um príncipe. Estas belas adormecidas são artigos científicos, trabalhos que foram praticamente ignorados depois da sua publicação e só começam a ser citados intensamente passadas muitas décadas, como se acordassem de um longo torpor digno de um conto de fadas.

Este conceito das belas adormecidas da publicação científica foi introduzido pela primeira vez em 2004, num trabalho onde se defendia que essas belas adormecidas eram casos raros. Mas Alessandro Flammini, investigador da Universidade do Indiana, Estados Unidos, e colegas fizeram uma análise intensa de milhões de artigos e descobriram que estes artigos “não são um fenómeno excepcional”, lê-se no trabalho publicado na segunda-feira na revista Proceedings of the National Academy of Sciences.

“Este estudo dá provas empíricas de que um artigo pode estar verdadeiramente ‘à frente do seu tempo’”, considera Alessandro Flammini, citado num comunicado da universidade. “Um tópico ‘prematuro’ pode não conseguir atrair atenção mesmo quando é introduzido por cientistas que já têm uma boa reputação.”

Um dos casos paradigmáticos é o artigo publicado na Physical Review, em 1935, pelos físicos Boris Podolsky, Nathan Rosen e o famoso Albert Einstein. O estudo, sobre o entrelaçamento quântico, só começou a ser muito citado passados 59 anos, em 1994.

Para o novo trabalho, a equipa analisou mais de 22 milhões de artigos da base de dados “Web of Science”, que reúne estudos tanto das ciências exactas e naturais como das ciências sociais, e examinaram ainda cerca de 384.000 artigos da base de dados da Sociedade Americana de Física, dedicada só a esta área do saber. Os artigos foram sendo publicados ao longo de mais de um século.

A análise permitiu contar o número de citações que um dado artigo teve ao longo dos anos, após a sua publicação. Essas citações, em artigos de outras equipas de cientistas, revelam a importância e o impacto que um artigo teve na comunidade científica, sendo usado para continuar a construir o edifício da ciência. A partir das citações dos 22 milhões de artigos – uma análise sem precedentes –, os cientistas mediram o que designaram por “coeficiente da bela adormecida” para cada trabalho. Este cálculo teve em conta como é que um artigo foi sendo citado ao longo dos anos, compara esse historial com um determinado valor de referência de citações, e considera ainda o ano em que foi mais citado.

De acordo com esta fórmula, o artigo que ficou em primeiro lugar deste coeficiente é da área da química: publicado em 1906 e dedicado à adsorção em soluções, só começou a ser verdadeiramente citado em 2002, atingindo cerca de 300 citações. Ou seja, esteve adormecido durante quase 100 anos e, de repente, teve uma alta taxa de citação.

Apesar de a comunidade científica poder estar mais atenta aos artigos bem-sucedidos, que são muito citados nos primeiros anos após a publicação, a realidade, segundo esta equipa, é mais complexa. “Descobrimos que os artigos cujo historial de citações é caracterizado por um longo período de dormência seguido por um crescimento muito rápido não são fenómenos excepcionais [isolados], mas apenas casos extremos de uma distribuição heterogénea mas contínua”, concluem os autores.

Quatro artigos do top 15 das “belas adormecidas” foram publicados há mais de cem anos. “A aplicação de alguns estudos é simplesmente imprevisível na altura”, explica Alessandro Flammini. “O segundo artigo mais cotado no nosso estudo, publicado em 1958, é sobre a preparação de óxido de grafite, que muito mais tarde se tornou num composto usado para produzir grafeno [descoberto em 2004], um material centenas de vezes mais resistente do que o aço, muito interessante para a indústria.”

Além da questão da imprevisibilidade, há outros dados importantes no estudo. Muitos destes artigos são ignorados durante mais de 50 anos. As disciplinas com mais “belas adormecidas” são a física, a química, os artigos que caem na chamada “categoria multidisciplinar” e a matemática. Mas os cientistas encontraram este fenómeno em áreas tão diversas como a medicina, a cirurgia, a estatística ou as ciências sociais. Um dos fenómenos mais interessantes, revela ainda este trabalho, é que muitos artigos acabam por ser descobertos (e citados) por áreas diferentes daquela a que o artigo original pertence, fazendo com que uma descoberta antiga dê frutos noutra área do saber.

O que falta agora, segundo Alessandro Flammini, é compreender os “mecanismos que provocam o acordar destas belas adormecidas”.

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