ADN dos aborígenes sugere que humanos saíram de África há 72 mil anos

Análise inédita do genoma de 83 aborígenes australianos e de 25 papuas da Nova Guiné ajuda a reconstruir o passado das populações humanas.

Foto
Durante muitos anos, os aborígenes da Austrália não aceitaram entrar em trabalhos científicos David Gray/Reuters

O homem moderno caminha pelo solo australiano há muito tempo. Há vestígios arqueológicos na Austrália com, pelo menos, 50.000 anos. Para o ocidental comum, esta ideia pode ser contra-intuitiva, mas a verdade é que, antes de os humanos modernos se separarem no ramo europeu e asiático, já os antepassados dos aborígenes australianos tinham colonizado aquele continente. A cronologia da história da humanidade obtida com estes e outros vestígios arqueológicos, e também com a ajuda da genética, fez alguns estudiosos sugerirem que houve não uma mas duas migrações de populações de humanos modernos vindas de África. A primeira migração deu origem aos aborígenes e a segunda levou humanos para a Europa e para a Ásia.

Porém, uma nova análise do genoma de 83 aborígenes australianos e de 25 papuas da Nova Guiné, um grupo indígena daquela ilha da Oceânia, revela que, afinal, uma única população humana terá saído de África, há cerca de 72.000 anos, povoando pouco a pouco o resto do mundo. Cerca de 20.000 anos depois, estes humanos já estavam na Austrália, mostra o trabalho publicado esta quinta-feira na Nature, fruto de uma colaboração internacional liderada por Eske Willerslev, da Universidade de Copenhaga, que teve participação portuguesa.

“A Austrália parece uma parte do mundo bastante isolada. Como é que os humanos conseguiram chegar lá tão cedo? Para isso, tiveram de atravessar água”, diz ao PÚBLICO Vítor Sousa, geneticista de populações, da Universidade de Berna, na Suíça, que tem desenvolvido técnicas de análise genética com a sua equipa, e que foram aplicadas a este trabalho. “A Austrália é das regiões fora de África que têm os vestígios mais antigos de humanos modernos. Como é que eles chegaram lá antes de chegarem à Europa?”

Estas dúvidas estão ligadas a uma dificuldade de se fazer investigação sobre a história humana na Austrália. Até agora, só se tinha feito a análise genética a três aborígenes — a um tufo de cabelo descoberto no deserto e a duas linhas celulares cuja proveniência não é bem conhecida. Devido ao colonialismo e aos actos terríveis que os europeus infligiram aos aborígenes, esta heterogénea comunidade étnica (quando os europeus chegaram à Austrália havia entre 250 e 400 línguas) tem recusado cooperar com a comunidade científica.

Mas depois de vários anos de diálogo, a equipa de Eske Willerslev conseguiu colaborar com aborígenes para este trabalho — alguns deles são mesmo co-autores no artigo da Nature — e foi finalmente possível olhar para a história daquela população a partir da genética.

“A nossa análise indicou que os papuas e os aborígenes australianos parecem ser descendentes de uma única onda de migração fora de África e têm com os europeus e os asiáticos um antepassado comum”, diz Vítor Sousa.

Segundo a análise, os papuas e os aborígenes separaram-se do resto da população humana há 58.000 anos e divergiram entre si há cerca de 37.000 anos. Até há poucos milhares de anos, o nível médio do mar era mais baixo do que hoje e a Nova Guiné estava ligada à Austrália, não se sabe qual a razão de uma separação tão precoce dos dois grupos.

Artigos contradizem-se?

Há 31.000 anos, os aborígenes de norte a sul da Austrália já estavam isolados a nível genético. A história de cada uma daquelas comunidades será, por isso, longínqua. Se pensarmos que as populações de europeus e de asiáticos se separaram há cerca de 42.000 anos, então não é despropositado dizer que estas comunidades da Austrália e da Nova Guiné são quase tão distantes entre si como um português de um chinês.

“Os nossos resultados confirmaram que a Austrália foi colonizada há muito tempo. Os aborígenes não são só um grupo, são muitos”, adianta o cientista português.

É este tipo de realidade sobre a história humana que surge, de repente, com uma quantidade tão grande de material genético. Ainda assim, não se sabe o que causou os humanos modernos que saíram de África terem-se mantido afastados do continente europeu e de grande parte da Ásia, preferindo seguir em direcção a leste. Este é apenas um dos mistérios sublinhados por este estudo. Há outros. A história dos movimentos humanos, da cultura material desses grupos e das suas línguas é complexa. A genética é uma janela importante para o passado, mas dá uma fotografia parcial do que aconteceu. Depende também da matéria-prima que usa. Ou seja, dos indivíduos cujo ADN foi analisado. E depende também de como se trabalha esses dados.

Por isso, estudos diferentes podem dar resultados diferentes. Além do artigo de Eske Willerslev, a edição desta quinta-feira da Nature traz mais dois estudos sobre as migrações humanas baseadas na análise genética de pessoas de todo o mundo. Um dos estudos, da equipa de Luca Pagani e Toomas Kivisild, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, mostra que 2% do genoma dos papuas é originário de uma população humana mais antiga, que saiu de África antes da população que acabou por colonizar o resto do mundo.

“Acreditamos que houve pelo menos mais uma expansão humana adicional que saiu de África e que ocorreu antes da grande expansão descrita no nosso trabalho e no de outros. Estas pessoas divergiram do resto dos africanos há cerca de 120.000 anos, colonizando algumas terras fora de África”, explica Toomas Kivisild, num comunicado da Universidade de Cambridge. “Dois por cento do genoma dos papuas é o único vestígio que resta desta linhagem extinta.”

Qual a razão de este valor não ter sido obtido pela equipa de Eske Willerslev? “Pode acontecer que o tipo de métodos que usámos não é sensível a esses 2%, porque tentámos testar se houve uma ou duas ondas de migração que deixaram evidências bastante significativas no genoma das populações actuais”, responde-nos Vítor Sousa, acrescentando ainda que a tecnologia usada foi diferente. “Vai ser interessante analisar os diferentes dados com os diferentes métodos.”

Outro argumento para ter havido uma única população a expandir-se para todo o mundo a partir de África é que o já famoso cruzamento entre humanos e neandertais — que viviam na Europa e na Ásia antes de o homem moderno ter surgido há cerca de 200.000 anos em África — está marcado na genética dos papuas e dos aborígenes australianos de hoje, explica ainda Vítor Sousa.

“Do nosso local de origem evolutiva, em África, o homem moderno migrou para quase todo os cantos habitáveis da Terra, ultrapassando obstáculos como o gelo, o deserto, os oceanos e as montanhas”, lê-se num comentário da Nature sobre os três artigos científicos, assinado por Serena Tucci e Joshua Akey, dois investigadores da Universidade de Washington, nos Estados Unidos. O artigo chama-se A map of human wanderlust. Ou seja, o mapa humano daquilo que pode ser traduzido como “a sede da viagem”, uma vontade tão antiga como a história da nossa espécie.

Sugerir correcção
Comentar