Fóssil revela a enorme migração humana da Eurásia para a África há 3000 anos

É a primeira vez que se consegue sequenciar o genoma de um antigo esqueleto humano em África. Na maioria das populações africanas, quatro a 7% do genoma é de origem euroasiática.

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Nos últimos 3000 anos houve muita mistura genética entre as populações africanas Roberto Schmidt/AFP

Olhos castanhos, cabelo preto, a pele provavelmente escura: estas são algumas características reveladas no genoma de um homem que viveu há 4500 anos, no Sudoeste da Etiópia, cujo esqueleto foi encontrado a 1963 metros de altitude, numa gruta chamada Mota, durante uma escavação iniciada em 2011. Devido ao calor e humidade da maioria do continente africano, que ajuda a degradar rapidamente o ADN, nunca se tinha conseguido sequenciar um genoma de esqueletos antigos. Até agora.

Esta descoberta, descrita num artigo desta sexta-feira da revista Science, permitiu usar a genómica para analisar movimentos de populações em África. Com isso, mostrou que uma migração de agricultores que se especulava ter acontecido há cerca de 3000 anos, vinda da Eurásia, teve uma dimensão enorme.

“Estimámos a existência de uma mistura [genética] proveniente da Eurásia substancialmente maior do que se tinha detectado antes, em que a fonte de quatro a 7% do genoma da maioria das populações africanas é euroasiática”, explica o artigo da equipa liderada por Andrea Manica, do Departamento de Zoologia da Universidade de Cambridge, Reino Unido. “E, mais importante ainda, detectámos um impacto geográfico muito mais alargado, que atingiu o Oeste e o Sul de África.”

Quando se pensa na história da humanidade, África é vista como o seu berço. É verdade. Os primeiros humanos surgiram naquele continente há mais de dois milhões de anos. O Homo sapiens, a nossa espécie, evolui ali há 200.000 anos. Nessa altura, já existiam outras espécies humanas na Europa e na Ásia, que tinham saído de África muito antes.

Mas há menos de 100.000 anos, os nossos antepassados repetiram esse movimento. E nas dezenas de milénios seguintes foram ocupando os continentes. Os outros Homo acabaram por desaparecer. Restámos nós, uma única espécie humana em todo o globo. Mas o que a história, a arqueologia e, nos últimos anos, a genética têm demonstrado é que a migração de populações não parou desde então. Parte da complexidade actual de cada território vem desta densa malha de movimentos humanos fabricada ao longo de milénios.

Um momento importante foi a migração de uma população de agricultores para a Europa vinda do Próximo Oriente entre há 8000 e 7000 anos. Agora, a descoberta do esqueleto na Etiópia veio ligar as migrações de África àquele grupo de agricultores da Eurásia.

“Sabemos que nos últimos 3000 anos houve uma completa mistura da genética das populações em África”, explica Marcos Gallego Llorente, outro autor do estudo da Universidade de Cambridge, citado num comunicado daquela instituição. No entanto, a explicação dessa mistura é limitada porque é feita a partir da análise genética das populações africanas actuais. Isso mudou com o novo esqueleto. “Sermos capazes de ter uma fotografia anterior a estas migrações é um grande passo.”

As temperaturas mais baixas e as condições da gruta onde o esqueleto estava enterrado, permitiram obter-se ADN em bom estado do osso temporal do crânio.

Com esse genoma, os cientistas puderam produzir vários níveis de análise. Por um lado, identificaram características daquele antigo homem. Perceberam, através dos genes, que tinha intolerância à lactose e estava adaptado à vida em altitude. Por outro lado, comparando o seu genoma com o de populações africanas actuais, a equipa concluiu que os aari – um grupo étnico da Etiópia que vive nas montanhas naquela região – são os mais semelhantes a nível genético com aquele homem.

Depois, foi possível identificar-se a porção de ADN dos aari que não existe no ADN daquele antigo homem. Ou seja, o ADN que aquelas populações ganharam devido ao cruzamento com populações humanas vindas de outros lugares e que foram chegando ali há menos de 4500 anos.

Este “novo” ADN era muito semelhante ao ADN da população que vive hoje na Sardenha, a ilha mediterrânica junto a Itália, e a um agricultor pré-histórico cujas ossadas foram encontradas na Alemanha. As pessoas que vivem na Sardenha são os mais directos descendentes da população de agricultores que saíram do Próximo Oriente há cerca de 7000 anos.

Esta nova informação indica que há naquelas populações africanas ADN proveniente de populações do Próximo Oriente e juntou-se a dados arqueológicos que já sugeriam a existência de uma migração vinda da Eurásia há 3000 anos, quando na Etiópia se começou a cultivar trigo e cevada. Com a nova análise, percebeu-se a dimensão desta migração. “Num cálculo grosseiro, a migração vinda da Eurásia para o corno de África foi equivalente a 30% da população que já vivia lá”, defende Andrea Manica, no mesmo comunicado. “E isso, para mim, é surpreendente. A questão é: o que aconteceu para haver este movimento tão repentino?”

O estudo genómico não tenta responder a esta questão. Mas consegue avaliar o impacto desta migração. “Os genomas desta migração infiltraram-se em todo o continente”, diz Marcos Gallego Llorente. “Desde as tribos iorubás, na costa ocidental africana, até aos mbuti, no coração do Congo – que têm respectivamente sete e 6% do genoma euroasiático.”     

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