Foi possível reverter sintomas do autismo em ratinhos adultos

Não é para já que se vai conseguir “cancelar”, no ser humano, os sintomas característicos do autismo. Mas a partir de agora, essa meta parece mais próxima.

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Os cientistas geraram ratinhos com sintomas semelhantes aos do autismo Justin Knight/MIT
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A investigadora Patrícia Monteiro DR

Neurocientistas nos EUA, entre os quais uma investigadora portuguesa, conseguiram pela primeira vez mostrar que, num modelo animal, é possível reverter algumas das graves perturbações comportamentais associadas ao autismo. Os seus resultados, que poderão um dia permitir desenvolver tratamentos contra esta doença humana, trágica e actualmente sem cura, foram publicados na última edição da revista Nature.

Um dos resultados mais surpreendentes é que, apesar de o autismo ser uma doença do desenvolvimento do cérebro, os cientistas mostraram que, no ratinho, algumas das suas manifestações podem ser revertidas mesmo na idade adulta. “Isto sugere que, mesmo no cérebro adulto, existe até certo ponto uma profunda plasticidade”, diz Guoping Feng, do Instituto de Tecnologia do Massachusetts (MIT) e líder do estudo, num comunicado daquela instituição. “Há cada vez mais indícios de que alguns dos defeitos [do autismo] são de facto reversíveis, o que nos permite esperar desenvolver no futuro tratamentos para doentes com autismo.”

Patrícia Monteiro, do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra e co-autora do trabalho, realça a importância do resultado: “Sendo o autismo uma doença do neurodesenvolvimento, não era claro se uma intervenção na fase adulta poderia também ser útil”, disse ao PÚBLICO. Mas, por incrível que pareça, foi.

O autismo é uma perturbação do desenvolvimento do cérebro que começa antes da nascença, mas cujo diagnóstico definitivo só costuma ser feito depois dos três anos de idade. A criança, começa por desenvolver-se com normalidade, para depois regredir cognitivamente. Deixa de falar e passa a apresentar sintomas inequívocos, tais como comportamentos repetitivos, interesses muito restritos e perturbações nas suas interacções sociais, retraindo-se sobre si própria.

O autismo tem raízes genéticas e pensa-se que, em muitos casos, várias mutações simultâneas em vários genes estão na origem da doença. Mas a maior parte desses genes ainda está por determinar – o que dificulta grandemente o estudo de modelos laboratoriais do autismo.

Porém, em cerca de 1% dos doentes, a disfunção de um só gene basta para provocar a doença. Chamado Shank3, este gene é vital para o desenvolvimento cerebral. “Existem vários genes implicados no autismo”, salienta Patrícia Monteiro. “E o gene Shank3 destaca-se por ser um dos mais [frequentemente afectados] no autismo associado a uma mutação num único gene.”

Foi precisamente a equipa de Guoping Feng que, em 2011 – e também dessa vez com a participação de cientistas da Universidade de Coimbra e do Instituto Gulbenkian de Ciência de Oeiras –, descobriu que, no ratinho, as mutações neste gene provocam sintomas semelhantes aos do autismo humano.   

Mais precisamente, a proteína cujo fabrico é comandado por este gene está presente ao nível das sinapses, que são as estruturas através das quais os neurónios comunicam uns com os outros. “A proteína produzida pelo gene Shank3 ajuda a organizar as centenas de outras proteínas que são necessárias para coordenar as respostas de cada neurónio aos sinais que recebe”, lê-se ainda no comunicado do MIT.

Mas quando este gene está ausente ou mutado, verifica-se uma disrupção das ditas sinapses, que por sua vez se manifesta por perturbações do comportamento. “Estes ratinhos apresentam nomeadamente problemas ao nível das interacções sociais e comportamentos repetitivos – que são perturbações geralmente ligadas ao autismo”, frisa Patrícia Monteiro. “Além disso, também apresentam ansiedade e alguns sinais de fraca coordenação motora.”

Já em 2011, a equipa também mostrara que, do ponto de vista celular, estes ratinhos tinham anomalias ao nível das sinapses dos neurónios de uma zona particular do cérebro, chamado estriado. O estriado é uma parte do interior do cérebro que coordena múltiplas vertentes das funções cognitivas, da motivação, da tomada de decisão e do chamado “circuito de recompensa” do cérebro.

E de facto, nos neurónios do estriado dos animais mutantes verificara-se uma drástica redução das “espinhas dendríticas”, que são pequenas protuberâncias da superfície celular que ajudam as sinapses a transmitir os sinais. “Os ratinhos que possuem mutações no gene Shank3 apresentam, a nível celular, uma comunicação deficiente entre neurónios de duas áreas do cérebro: o córtex e o estriado”, resume Patrícia Monteiro. 

No estudo agora publicado, os cientistas foram mais longe: quiseram saber se era possível reverter esses defeitos do desenvolvimento embrionário mesmo agindo muito depois, quando os estragos já se tivessem tornado supostamente irreversíveis. Para isso geraram, por engenharia genética, ratinhos nos quais o gene Shank3 permaneceu “desligado” durante o desenvolvimento embrionário, mas que podiam tornar a “ligar” em qualquer altura após a nascença, simplesmente acrescentando tamoxifeno (um conhecido medicamento contra o cancro da mama) à comida dos animais.

A seguir, quando os ratinhos já tinham quatro meses e meio de vida (o que corresponde ao início da idade adulta), os cientistas reactivaram o gene Shank3, explica ainda o já referido comunicado. E conseguiram assim, não só eliminar o comportamento repetitivo dos animais, como também a sua tendência a evitar o contacto social. E em paralelo, o estudo celular revelou que o número de espinhas dendríticas tinha aumentado de forma espectacular no estriado dos ratinhos tratados com tamoxifeno.

A equipa também experimentou o “tratamento” em ratinhos mais novos, com apenas 20 dias de vida. E aí, conseguiu resultados ainda melhores: recuperou também, embora parcialmente, a coordenação motora dos animais e reduziu o seu nível de ansiedade, o que não acontecera nas experiências com ratinhos adultos. “Nos ratinhos jovens não podemos afirmar que exista uma reversibilidade de todos os comportamentos, mas existe sem dúvida uma melhoria de todos os comportamentos”, frisa Patrícia Monteiro.

Claro que este tipo de terapia não está, nem de longe, prestes a ser testada em seres humanos. Ainda há muito por perceber, como por exemplo “quais são os circuitos [neuronais] que controlam cada comportamento e também o que realmente mudou ao nível estrutural”, diz Guoping Feng.

Seja como for, “estes resultados apontam para futuras terapias de reparação genética do autismo", salienta Patrícia Monteiro. Por exemplo, através da já célebre CRISPR, uma nova técnica, muito precisa e simples de aplicar, que permite alterar o ADN em qualquer local pré-escolhido.

“Estas terapias de reparação genética não estão ainda prontas para ser utilizadas em humanos", acrescenta a cientista, "mas poderão potencialmente vir a ser usadas para reparar mutações no gene Shank3 e melhorar, mesmo na idade adulta, o prognóstico do autismo”.

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