Fábulas de um futuro distante: na morte de um lince

Diário de um secretário de Estado com a tutela da conservação da natureza no dia da morte do primeiro lince reintroduzido em Portugal.

Nunca gostei de gatos. Sou alérgico e nunca pude ir brincar a casa dos meus primos, que tinham cinco. Nem de feras nos circos, que tanto me assustavam como me faziam pena. Acho que já não há. Logo me calhou tutelar a área da conservação da natureza numa altura em que o programa de conservação do lince-ibérico passou à fase in situ. Agora, só faltava mesmo soltá-los.

 Cedo me apercebi de que este não era só mais um projecto de conservação da natureza. A paixão com que os intervenientes – técnicos, gestores e políticos – de Espanha e de Portugal falavam do assunto surpreendeu-me e deixou-me de sobreaviso. Os linces eram uma questão de Estado, e logo agora que eu os tutelava. Só a mim…

A pressão para reintroduzir na natureza os exemplares nascidos em cativeiro era enorme: já existiam muitos nos centros de recuperação e o cidadão comum (também conhecido por eleitor) já não achava graça nenhuma ao dinheiro gasto no programa sem nenhum resultado palpável. A oposição aproveitava-se e a pressão de cima também me incomodava. Garanti ao ministro que a bem de todo o processo e, no limite, da nossa permanência no Governo, teríamos de manter as decisões exclusivamente baseadas nos pareceres técnicos, e que não contaria comigo para outra coisa. Fui três vezes ao Parlamento dizer que existiam linces, sim, quantos eram, e quanto tinha custado até agora o programa aos contribuintes, esclarecendo que não me competia determinar a data para as primeiras libertações, visto o assunto ser exclusivamente técnico. Iria as vezes que fossem necessárias, sempre com a mesma atitude.

Por fim, chegou o dia D. O momento de saber quanto valemos enquanto povo que decidiu investir no combate sério à extinção do felino mais ameaçado do mundo. Com a merecida pompa, assisti de fora à libertação de uma jovem fêmea, num cercado preparado para o efeito. Não sei se sou alérgico também a linces, mas não quero saber. O ministro tem alergia aos fenos, por isso assunto resolvido. Quem abriu a caixa foi um jovem estudante do primeiro ano de medicina veterinária que, no Verão passado, passou voluntariamente centenas de horas no centro de recuperação, mesmo sabendo que nunca estaria autorizado a tocar num lince, por imperativos do protocolo técnico. A sua cara emocionada jamais esquecerei. A cara de reprovação do ministro por não ter aproveitado politicamente o momento já a esqueci, alergias à parte.

Hoje de manhã, menos de um mês depois desse momento que ainda saboreava, recebo a mais temida notícia. A jovem fêmea foi encontrada morta pelos serviços, aguardando-se a necropsia para apurar as causas de tão triste desfecho. Percebi que o meu dia tinha mudado, que o meu destino era de novo aquele cercado em pleno Alentejo. A equipa devia estar muito mais destroçada do que eu e, agora sim, era altura de dar o sinal. Dar a cara pela derrota, assumi-la como minha e reiterar, à frente de todos, a total confiança na equipa, ainda que sem responsabilidades apuradas. Uma coisa de cada vez. Foi esta mesma equipa que nos trouxe até aqui e será com ela que iremos a algum lugar. É assim que entendo a governação e não sei fazer de outra forma. De cima não me disseram nada. Acho que entenderam de uma vez com o que contam.

Regresso já tarde a casa para o sono dos justos, mesmo a tempo de ler uma história ao filhote mais novo. Tiro da prateleira O meu gato Tobias é parecido com o lince-ibérico, de Paula Abreu, que uma amiga me ofereceu. “ – Pai, por que é que não temos um gato? – Boa noite, querido. Até amanhã.”

Biólogo (bagoncas@gmail.com)

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