Este rato não sente o veneno dos escorpiões e até os come

Para o Onychomys torridus, os escorpiões servem de refeição e nem sente as suas picadas. Agora descobriu-se por que resiste ao veneno, o que pode ajudar a desenvolver novos analgésicos.

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Este rato não sente o veneno dos escorpiões e até os come Science

O vídeo de um roedor do deserto norte-americano a atacar um escorpião conterrâneo impressiona. Os dois animais estão a ser filmados dentro de um aquário com areia e pedras, que imitam uma paisagem desértica como a do Arizona, nos Estados Unidos. Felpudo, focinho pontiagudo e orelhas de peluche, o Onychomys torridus não atinge mais do que 12,5 centímetros, é um predador e avança sem medo para o Centruroides sculpturatus – sete centímetros, cor amarela esbatida, dono de uma das ferroadas mais dolorosas da América do Norte.

Os momentos seguintes parecem um acto de masoquismo por parte do mamífero. O ferrão do escorpião atira-se à cara do rato repetidamente, e pica, pica, pica. Mas o roedor esfrega o focinho duas ou três vezes, e continua impávido a dar-lhe mordidelas. Adivinha-se que a batalha está concluída quando a cauda do escorpião não se levanta mais do chão. O rato venceu, come o escorpião, não há veneno que o abale.

Ao contrário dos outros roedores, esta espécie tem uma mutação numa proteína que torna estes mamíferos resistente ao veneno do Centruroides sculpturatus, mostra um estudo publicado na edição desta sexta-feira da revista Science.

“A maioria das pessoas descreve a picada do Centruroides sculpturatus como a sensação de queimadura de um cigarro e depois ter uma unha a pressionar esse local. É uma dor que queima e arde, mas há também alguma coisa no veneno que provavelmente activa os receptores mecânicos [importantes para se sentir o toque] que tornam as vítimas hipersensíveis a uma pequena pressão”, descreve Ashlee Rowe no podcast da Science. A investigadora é uma das autoras do estudo, da Universidade do Texas em Austin, nos Estados Unidos.

Ashlee Rowe nunca foi picada pelo Centruroides sculpturatus, mas todos os Verões vai ao deserto do Arizona apanhar indivíduos desta espécie para as suas experiências. No deserto, pergunta às pessoas se já foram picadas e qual a sensação que o veneno deste escorpião causa. Há poucos registos de mortes provocadas por esta espécie, as pessoas doentes, as crianças e os idosos são os mais vulneráveis. Mas a dor que os animais e os humanos sentem é tão grande que chega para afastar potenciais predadores do escorpião.

Um caso excepcional
Mas o Onychomys torridus é uma excepção – e isso levanta algumas questões científicas. A dor salva-nos constantemente de estímulos que podem, se não matar-nos, pelo menos causar a morte de tecidos. É uma adaptação à realidade, que nos avisa: “Não faças isso, não toques no fogo senão queimas-te.” Por isso, processos de adaptação à dor são sempre um motivo de curiosidade para quem estuda a natureza. “Se estes roedores não respondessem à dor em geral, não sobreviveriam muito tempo no ambiente natural”, refere a investigadora. Mas parece que são apenas resistentes a alguns venenos.

Para compreender o que se passa com o veneno do escorpião, a equipa internacional de investigadores comparou o Onychomys torridus com o rato doméstico (Mus musculus). Fizeram uma primeira experiência muito simples: injectaram uma pequena dose de veneno do escorpião nas patas de indivíduos das duas espécies e viram quanto tempo é que cada roedor ficava a lamber a pata. Enquanto o rato doméstico lambia a pata durante mais de três minutos, o roedor americano fazia-o durante poucos segundos. Se injectassem uma solução salina na pata, o Onychomys torridus lambia-a durante mais alguns segundos do que quando recebia o veneno.

Paradoxo fisiológico
Depois, os investigadores tentaram perceber o que se passava nesta espécie ao nível dos processos nervosos que desencadeiam a sensação de dor. Há dois canais de sódio, situados nas membranas das células nervosas, que são os principais responsáveis pela sensação de dor. Estes canais – que não são mais do que grandes proteínas que formam um poro na membrana das células nervosas e permitem a passagem de iões, que acabam por desencadear um sinal – situam-se em células nervosas do sistema nervoso periférico. Na pele, por exemplo.

Uma substância que causa dor, como um veneno, liga-se a aminoácidos (os tijolos das proteínas) da parte extracelular do canal de sódio 1.7, e desencadeia um primeiro fluxo de iões. Mas é necessário depois a activação do segundo canal de sódio, chamado de 1.8, para o sinal ser suficientemente forte e seguir até ao cérebro, provocando a sensação de dor.

O veneno do escorpião tem várias substâncias diferentes. No Mus musculus, há substâncias a activar o canal de sódio 1.7, provocando a dor intensa. Mas a equipa descobriu, analisando os potenciais de acção destes dois canais, que no Onychomys torridus alguma substância do veneno estava a bloquear o canal de sódio 1.8. Assim, apesar de o veneno poder estar igualmente a activar o canal de sódio 1.7, o bloqueio do canal de sódio 1.8 impedia que o sinal se propagasse e provocasse a dor. “Paradoxalmente, os ratos usam uma toxina do veneno para bloquear o efeito do próprio veneno”, explica Ashlee Rowe.

Ironicamente, o veneno do escorpião acaba por servir de analgésico nestes ratos. Ao bloquear o canal de sódio 1.8, o veneno impede, pelo menos momentaneamente, o início do processo de dor.

Novos analgésicos?
Os cientistas estudaram ainda os canais de sódio 1.8 no Onychomys torridus, noutras espécies de roedores e de mamíferos para perceber qual a diferença que permitiu esta adaptação. Como estes canais estão associados a um processo tão disseminado e importante que é a capacidade de sentir dor, sabe-se que estas proteínas se mantêm semelhantes ao longo da evolução das espécies. No entanto, a equipa descobriu pequenas variações nestes canais nas diferentes espécies, e identificou os dois aminoácidos que se ligam à toxina do veneno do escorpião e permitem bloquear a dor.

“Há variabilidade nas estruturas dos canais de sódio das diferentes espécies. Mesmo pequenas variações podem produzir efeitos fisiológicos profundos”, refere a cientista, defendendo que esta descoberta pode ter aplicações. “Esta investigação mostra a importância do canal de sódio 1.8 na sinalização e regulação da dor. Se compreendermos melhor a interacção das toxinas do veneno e deste canal no bloqueio da dor, podemos usar isto como base para conceber uma nova classe de analgésicos que não causem dependência.”
 
 
 
 

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