Erros na divisão celular explicam resistência de células cancerosas às terapias

O vídeo do estudo liderado por investigadora portuguesa mostra uma célula humana em divisão irregular e foi destacado como a Imagem Biomédica do Dia pelo Imperial College de Londres.

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Divisão de uma célula normal à esquerda, e de outra com trissomia 13 à direita, com um micronúcleo anormal assinalado pela seta IBMC
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Investigadora Elsa Logarinho DR

Os erros na distribuição dos cromossomas durante a divisão celular são comuns nas células cancerosas. A acumulação sucessiva de anomalias ao longo das divisões pode estar na origem de uma adaptação e resistência cada vez maiores à quimioterapia das células que têm um cromossoma extra. É precisamente isto que acontece para células com trissomia do cromossoma 13 e 7, como se descobriu num estudo liderado por Elsa Logarinho e que reúne cientistas portugueses do Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC) e do Hospital de São João, ambos no Porto, e do Instituto de Tecnologia da Virgínia, nos Estados Unidos.

Um dos vídeos resultantes do estudo foi destacado como Imagem Biomédica do Dia, a 16 de Junho, pelo Imperial College de Londres, que não esteve envolvido na investigação. No vídeo vemos uma célula humana embrionária, com trissomia 13 – um cromossoma 13 a mais –, a dividir-se de forma anómala. Cada célula normal deve ter apenas um núcleo, onde se localiza o material genético empacotado em 46 cromossomas. Na etapa da divisão em que os cromossomas migram para os pólos da célula (a anáfase), no vídeo vê-se que um deles fica atrasado, acabando por dar origem a um micronúcleo extra que vai integrar uma das células resultantes da divisão. Assim, uma célula-mãe aneuplóide – com um número anormal de cromossomas – gerou duas células-filhas que acumulam alterações adicionais no seu número de cromossomas.

“O que vemos no vídeo é que a aneuploidia gera mais aneuploidia”, explica ao PÚBLICO Elsa Logarinho, do IBMC e líder do estudo publicado na revista científica eLife.

Além de células com um número normal de cromossomas – euplóides –, os investigadores usaram outras células com trissomia 13 e trissomia 7 do cancro colo-rectal, uma vez que estas anomalias cromossómicas estão presentes neste cancro, o mais frequente e o que mais mata em Portugal. Recolheram ainda células do líquido amniótico, tanto normais como com trissomia 13, que, tal como a trissomia 7, são causas comuns de abortos quando ocorrem em células reprodutivas. As células com trissomias apresentam uma maior instabilidade cromossómica, potenciando-se assim a acumulação de mais alterações nas células-filhas.

Para as células com trissomia do cromossoma 13, verificou-se ainda que cerca de 10 a 12% não conseguia terminar a divisão, resultando numa única célula com o número de cromossomas duplicado. Esta falha na etapa final da divisão celular – a citocinese – deve-se à presença de altos níveis de uma proteína chamada espartina, identificada agora pela equipa de Elsa Logarinho como responsável por impedir a divisão final de uma célula-mãe em duas células-filhas.

“A instabilidade do genoma de células com trissomias pode potenciar as etapas iniciais de carcinogénese e contribuir para a adaptação das células cancerosas na aquisição de resistência a drogas usadas em quimioterapia”, explica ainda Elsa Logarinho.

Duas correntes
Afinal, por que é que as células aneuplóides se dividem, sucessivamente, de forma anómala? Neste assunto, tem havido uma falta de consenso dentro da comunidade científica. Uma grande parte dos investigadores defende que uma célula se divide de forma anómala devido a algum pequeno erro molecular ou bioquímico, que consequentemente a faz acumular muitos erros ao longo das várias divisões. Essa acumulação de erros pode levar uma célula a caminhar para a sua autodestruição, um processo que acaba por ser benéfico para o organismo. Esta tem sido, aliás, uma das vias terapêuticas mais abordadas, procurando-se induzir este mecanismo de autodestruição em células cancerosas, e que funciona na maior parte das situações.

Há, porém, algumas células que, em vez de se autodestruírem, adquirem uma resistência cada vez maior aos tratamentos da quimioterapia. Em relação a estas células, um grupo menor de investigadores considera, sem que nunca se tivesse conseguido provar até agora, que um erro cromossómico – uma aneuploidia – poderia estar na origem do desastre, que é a acumulação de muitos erros mas sem que a célula morra. É neste último grupo que se inclui a equipa de Elsa Logarinho, que agora confirmou experimentalmente esta hipótese para as células com trissomia 7 e 13, comuns no cancro colo-rectal.

“Este grupo de investigadores conseguiu provar, pela primeira vez, que uma trissomia pode, por si, causar o desastre, pois activa um mecanismo que a perpetua”, diz ao PÚBLICO Júlio Borlido Santos, biólogo e chefe do Departamento de Comunicação do IBMC. “Como é que erros cromossómicos conseguem dar a volta e evitar o colapso da célula?”, acrescenta Júlio Borlido Santos em relação à abordagem que se segue na investigação.

Compreender como impedir ou travar este processo poderá vir a permitir avanços nos tratamentos dirigidos especificamente a células cancerosas com este tipo de trissomias. “Isto pode ser útil no desenvolvimento de terapias contra células cancerosas com aneuploidias”, sublinha a investigadora, citada num comunicado do IBMC.

A partir destes resultados, os cientistas enfrentam agora o desafio de determinar como diferentes alterações no número de cromossomas, para além das trissomias, podem afectar a estabilidade cromossómica de uma célula durante a sua divisão.

Texto editado por Teresa Firmino

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