Batalha pode explicar o mistério do exército persa desaparecido no Egipto

A lenda é de Heródoto: uma tempestade de areia fez desaparecer 50.000 soldados persas no Egipto. Desde o século XIX que os arqueólogos tentam encontrar vestígios do exército. A descoberta de um templo romano aponta agora para uma batalha fatal.

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A cartela com o nome Petubastis III mostra que houve um templo mandado erigir por este faraó Bruno Bazzani
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Uma reconstituição do que terá sido a entrada do templo da antiga vila romana de Amheida Martin Hense

À História pode estar associada a ideia de sedimentação. Ela, a História, revela-se em estratos por baixo de estratos com testemunhos enterrados da civilização, que nos fazem vislumbrar acontecimentos de séculos cada vez mais distantes. Mas o templo romano encontrado em 2005 no oásis de Dakhla, no Egipto, remete para o conceito da metamorfose das rochas, que quando são engolidas e comprimidas no interior da crosta terrestre se alteram física e quimicamente, ganhando uma nova identidade.

Este edifício religioso foi erigido no século I d.C. com blocos de templos construídos e destruídos no passado, alguns muito antigos, de 1000 anos antes. É a História dentro da História, transformada.

Dois destes blocos, encontrados por uma equipa de arqueólogos que inclui Olaf Kaper, um egiptólogo da Universidade de Leiden, na Holanda, viraram do avesso um mistério com 2450 anos. Heródoto, um famoso grego do século V a.C., considerado o primeiro historiador, conta na sua famosa obra Histórias o caso de 50.000 soldados persas que desapareceram no deserto, tendo sido apanhados por uma tempestade de areia, por volta de 524 a.C., no século VI a.C.

Segundo Heródoto, estes 50.000 soldados tinham sido enviados pelo rei persa Cambises II para capturar os habitantes e destruir um templo de uma povoação, associada hoje pelos historiadores ao oásis de Dakhla. Na altura, o monarca já tinha conquistado cidades egípcias como Mênfis ou Tebas, expandindo o império persa até àquela região. Mas o estranho desaparecimento daqueles soldados passou a ser um mistério para os arqueólogos, que desde o século XIX procuraram por vestígios do exército. Agora, os dois blocos descobertos do templo romano indicam, segundo Olaf Kaper, que estes 50.000 soldados foram, afinal, derrotados pelas forças de Petubastis III, um líder rebelde egípcio que durante um par de anos conseguiu recuperar parcialmente o império egípcio aos persas e foi coroado faraó.

“Heródoto viajou no Norte do Egipto e escreveu o que ouviu”, explica Olaf Kaper ao PÚBLICO, que apresentou a sua nova teoria no congresso internacional Memória Política durante e depois do Império Persa, na Universidade de Leiden, em Junho. O antigo historiador grego terá nascido em 484 a.C. na cidade grega de Halicarnasso, situada junto à costa mediterrânica, que hoje ficaria no Sudoeste turco. As suas viagens ao Egipto terão ocorrido por volta das décadas de 460 e 450 a.C.. Do que ouviu, “o desaparecimento do exército era claro, mas os persas tornaram o acontecimento menos devastador ao culparem o clima”, defende o egiptólogo.

A escuridão do passado

Sem provas físicas, os historiadores têm tentado interpretar as palavras de Heródoto com a ajuda do contexto: a geografia, o que já se conhece sobre os impérios egípcio e persa daquela altura, até os fenómenos meteorológicos como as tempestades de areia.

É um trabalho de detective em que a escuridão do passado entrelaça e transforma cada novo dado, permitindo inúmeras interpretações. No seu livro Four Ways to Forgiveness (O Dia do Perdão, na edição portuguesa), a premiada escritora norte-americana de ficção científica Ursula K. Le Guin leva esta ideia de transformação e metamorfose da História ao extremo, quando fala de uma raça alienígena civilizada há três milhões de anos: “Os acontecimentos dos primeiros dois milhões de anos, tal como as camadas de rocha metamórfica, estavam tão comprimidos, tão distorcidos pelo peso dos milénios que se sucederam e dos seus infinitos acontecimentos, que dos poucos detalhes que sobreviveram só se podia reconstruir as generalidades mais abrangentes.”

A escala temporal da civilização humana, com cerca de 8000 anos, é completamente diferente. Mesmo assim, os documentos que sobreviveram até hoje dos poucos milénios de História que temos são um pequeno fragmento de tudo o que foi escrito. Nos nove livros da obra Histórias, Heródoto relata pela primeira vez as guerras greco-persas e os seus antecedentes, graças à pesquisa que fez. O documento é a mais antiga janela que temos de acontecimentos fundamentais sobre o início da história do Ocidente, como a ascensão da cidade grega de Atenas, de onde saíram figuras e uma cultura que marcaram para sempre a Europa. E serve de ponto de partida para a historiografia que se fez a seguir. Mesmo informações secundárias, como o desaparecimento do exército persa, permitem olhar, perguntar e estabelecer relações com vestígios descobertos nas escavações arqueológicas de hoje.

“A História Antiga é escrita a partir de informação arqueológica como a minha. Temos Heródoto como o primeiro historiador, mas é evidente que ele não estava sempre certo, longe disso”, aponta Olaf Kaper.

Roma no Egipto

O templo descoberto em 2005 pertence a uma vila romana chamada Amheida, no oásis de Dakhla, cujo projecto arqueológico está a ser liderado por Roger Bagnall, do Instituto para o Estudo do Mundo Antigo da Universidade de Nova Iorque, Estados Unidos. “Em dez anos, escavámos algumas casas, uma que tem pinturas nas paredes, banhos romanos e uma igreja, além dos vestígios do templo”, explica Olaf Kaper. O oásis de Dakhla é enorme, tem um comprimento de 80 quilómetros de leste a oeste, e uma largura máxima de 25 quilómetros. A área situa-se a 500 quilómetros a oeste da antiga cidade egípcia de Tebas, hoje Luxor, que fica junto ao rio Nilo, a cerca de 600 quilómetros a sul do Cairo.

Ao contrário dos oásis do delta do Nilo, o de Dakhla nunca foi muito povoado, a cidade de Amheida ficou desabitada após o IV século d.C.. “Não há muitas cidades egípcias da altura do domínio romano que tenham sobrevivido em condições tão boas como Amheida”, acrescenta o investigador.

O templo romano foi demolido, mas abaixo da superfície do sítio arqueológico estavam milhares de blocos enterrados. “Quando escavámos o local, descobrimos que era um templo do período romano, da altura dos imperadores Tito e Domiciano, em estilo egípcio, o que era uma prática comum, construído com os blocos de templos de fases anteriores. Ao analisar os vestígios, sei agora que existiram nove fases diferentes de construção. E uma das fases é de Petubastis III”, explica Olaf Kaper.

Os primeiros indícios sobre Petubastis III surgiram logo em 2005, quando descobriram uma cartela com o nome real Petubastis — a cartela é um bloco com o nome de um faraó em hieróglifos e uma linha ovalada à volta da inscrição. Mas ninguém poderia dizer a qual Petubastis se referia a cartela, se aos dois faraós com o mesmo nome que viveram séculos antes, ou ao terceiro. Só em 2014, com a descoberta de uma segunda cartela onde estava escrito “shr-ib-Ra”, o nome de coroação de Petubastis III, que reinou entre 522 e 520 a.C., é que foi possível identificar o faraó certo.

Para o egiptólogo, aquele templo diz muito da importância que o local tinha para Petubastis III. “O facto de este rei desconhecido e efémero, que governou apenas parte do país durante a ocupação persa, ter construído um templo em Dakhla, mostra que este local era muito especial para ele. Os templos são construídos com dinheiro público, e normalmente isto é feito em grandes cidades ou nos locais de origem dos reis”, defende o egiptólogo. “A única explicação para a existência deste templo é que Petubastis III usou o oásis como um centro de poder.”

É neste lugar que os escritos de Heródoto, o desaparecimento do exército persa de Cambises II e a origem de Petubastis III se conjugam. Segundo o investigador, o rebelde egípcio era uma força a temer. Por isso, para Olaf Kaper, Cambises II pôs os seus homens em movimento — num exército com um tamanho bastante razoável para a época — para o derrotar por volta de 524 a.C.: “O exército desapareceu, Heródoto apresenta-nos a história de uma tempestade de areia. Isto é demasiado improvável para ser verdade, certamente não é para ser tido como um facto, uma explicação muito melhor é que o exército tenha sido derrotado. Agora que temos um poderoso inimigo dos persas em Dakhla, este cenário é o mais provável.”

Apesar de o exército persa estar mais equipado, Olaf Kaper especula que as forças de Petubastis III conheceriam melhor o terreno, o que lhes daria uma vantagem determinante.

Apagar a História

Cambises II ficou por Tebas enquanto o seu exército tomou o caminho do deserto e desapareceu nos confins da História. Depois, o rei voltou para a Pérsia onde acabou por morrer. Dois anos depois, Petubastis III entrava em Mênfis, onde foi coroado, mas foi faraó por pouco tempo. Dario I, que sucedeu a Cambises II, lançou as suas forças contra o recém-coroado monarca e em 519 a.C. já tinha recuperado o território.

A escuridão que envolve esta batalha deve-se primeiro a Cambises II e principalmente a Dario I. “Quando Cambises II soube do desastre, ele fez com que a notícia não se espalhasse para não encorajar mais uma revolta”, defendeu o egiptólogo na apresentação que fez no congresso de Junho. Depois, “Dario I conseguiu restabelecer o controlo [do Egipto] e apagou todas as referências a Petubastis III nas listas dos reis”.

Quanto à possibilidade de virem a descobrir vestígios do exército persa ou da batalha, Olaf Kaper responde-nos que não tem muita esperança: “Claro que gostaríamos de saber mais sobre a batalha entre os egípcios rebeldes e o exército persa, mas não deve haver novidades, porque o acontecimento foi apagado da história por Dario I. A não ser que encontremos o local da batalha algures preservado no deserto, mas acho improvável.”

O novo monarca do império persa quis, por isso, refazer a História. É um hábito velho. Mas os acontecimentos deixam lastro e deixam rasto. A descoberta feita no oásis de Dakhla transformou agora o destino daqueles 50.000 homens: a tempestade de areia foi engolida por uma batalha.

Não sabemos, no entanto, o que a história deste exército ainda nos reserva. O futuro pode trazer mais descobertas e metamorfosear esta lenda outra e outra vez. No imenso passado de três milhões de anos da raça alienígena inventada pela escritora Ursula K. Le Guin, a descoberta de um documento histórico provoca angústia. “Um rei governou em Azbahan; o império caiu nas mãos dos infiéis; um foguetão aterrou no planeta Ve. Mas existiram incontáveis reis, impérios, invenções, milhares de milhões de vidas vividas em milhões de países, monarquias, democracias, oligarquias, anarquias, idades de caos e idades de ordem, panteão por cima de panteão de deuses, guerras infinitas e tempos de paz, incessantes descobertas e esquecimentos, inúmeros horrores e triunfos, uma repetição sem fim de contínuas novidades”, lê-se no romance. “Qual é a utilidade em tentar descrever o fluxo de um rio num dado momento e depois no momento a seguir, e depois no seguinte, e no seguinte, e no seguinte? Fica-se cansado. Diz-se antes: existe um rio enorme que corre nesta terra, e chamámos-lhe História.” 

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