Conversas à fogueira terão estimulado a evolução das nossas capacidades cognitivas, sociais e culturais

É provável que contar e ouvir histórias pela noite dentro tenha contribuído para a imaginação e empatia dos primeiros humanos.

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Curandeiros Kung sentados ao pé de uma fogueira Richard Katz

Ainda hoje, o início da noite é a altura ideal para contar histórias ou para ouvir as dos outros. Os nossos filhos reclamam-nas antes de apagar a luz e nós próprios, quando um amigo nos conta uma história à luz da lareira ou das velas, esquecemos as nossas preocupações do dia, descontraímos e sonhamos acordados.

Será que, há centenas de milhares de anos, quando os nossos longínquos antepassados conseguiram controlar o fogo, também eles sentiram essa atracção pelas conversas nocturnas à luz de uma fogueira? Claro que é impossível saber de que terão falado, que histórias terão desencantado, que mitos e lendas terão partilhado. Mas é contudo possível ter-se uma ideia do conteúdo dessas conversas com base em dados sobre populações actuais.

E a partir daí, torna-se razoável especular que o controlo do fogo não terá apenas permitido aos primeiros humanos cozinhar os seus alimentos e proteger-se dos predadores. Também terá tido um papel essencial no desenvolvimento das suas capacidades cognitivas, culturais e sociais. É precisamente essa a conclusão de um estudo publicado nesta segunda-feira na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).

Há 40 anos que Polly Wiessner, antropóloga da Universidade do Utah (EUA), estuda os costumes e tradições dos Kung – um grupo de cerca de 4000 bosquímanos que vivem em diversas povoações no deserto do Calaári, entre o Nordeste da Namíbia e o Noroeste do Botswana, no Sul de África. E agora, ela comparou em grande pormenor as características das conversas diurnas e nocturnas de várias destas comunidades, fazendo assim, escreve na PNAS, uma "etnografia da noite",  à procura daquilo que terá “ateado a fogueira” da cultura e da sociedade na noite dos tempos.

“Não é possível descobrir o passado através dos bosquímanos”, avisa porém a cientista em comunicado da sua universidade. “Mas estas pessoas vivem da caça e da recolecção, que foi também a forma de vida dos nossos antepassados durante 99% da sua evolução.” Por isso, as conversas dos bosquímanos à noite “ajudam-nos a responder à questão de como o espaço nocturno, iluminado pelas fogueiras, contribui para a vida humana”.

O certo é que, a partir do momento em que o uso do fogo se generalizou, há entre 200 mil e 100 mil anos, isso alterou os ritmos circadianos dos seres humanos. A luz permitiu ficar acordado e estendeu o dia, “criando um tempo em que as actividades sociais não interferiam com a vida produtiva e a subsistência”, escreve ainda a cientista.

O seu estudo baseia-se em dois tipos de dados. Por um lado, os apontamentos que Wiessner fizera, em 1974, relativos a 174 conversas diurnas e nocturnas em dois acampamentos Kung, com uma duração de 20 a 30 minutos cada e que envolviam entre cinco e 15 pessoas. Por outro, as gravações de conversas, transcritas para inglês, de 68 histórias contadas à luz da fogueira, que a autora presenciou ao longo de várias estadias entre 2011 e 2013 em aldeias Kung.

Os temas das conversas diurnas e nocturnas revelaram-se, de facto, tão diferentes como o dia e a noite. De dia, 34% das conversas eram queixas, críticas e mexericos; 31% sobre questões económicas; 16% anedotas; e 6% histórias e outras coisas. Mas à noite, depois de cada família ter jantado ao pé da sua própria fogueira, as pessoas reuniam-se frequentemente em redor de uma fogueira maior – e nessas reuniões alargadas, as histórias passavam a ocupar 81% do tempo.

“À noite, as pessoas descontraem, acalmam e procuram entretenimento”, explica ainda Wiessner. Contam-se histórias, mas também se fala de pessoas conhecidas mas ausentes, que não residem na mesma aldeia, bem como do mundo sobrenatural. Canta-se, dança-se e os curandeiros entram em transe para comunicar com os espíritos dos entes queridos que morreram e proteger os vivos que eles querem levar consigo.

Segundo Wiessner, os primeiros humanos terão assim construído, na sua cabeça, comunidades virtuais de seres reais e imaginários, e isso terá ampliado a sua imaginação e a sua capacidade de perceber as emoções alheias – um traço exclusivamente humano.

“A noite em redor de uma fogueira é um momento universal para formar laços, difundir informação social, para se entreter e partilhar emoções”, salienta a cientista. Os conflitos da vida quotidiana apaziguam-se.

Wiessner também pergunta, mas sem dar respostas, em que medida é que a luz eléctrica nos estará a “roubar” esse momento ao permitir-nos trabalhar dia e noite. “Agora, o trabalho estende-se pela noite dentro, em casa, em frente a um computador.” O que acontecerá às relações sociais num mundo onde “apenas tenho 15 minutos para contar uma história de adormecer aos meus filhos”?

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