Contra a mercantilização do conhecimento: por uma educação e uma ciência públicas e cidadãs

Exorta-se a que a promoção da cultura científica seja uma prioridade nacional, enquanto base de cidadania, de inclusão não subordinada, de conhecimento rigoroso de nós próprios.

É hoje evidente que, sob o pretexto da crise financeira, o atual governo avança a passos largos para uma estratégia de fragmentação e mercantilização da educação e da ciência, num duplo sentido: por um lado, as escolas, os cursos, os/as professores/as, os/as investigadores/as e o próprio conhecimento, são reduzidos a produtos transacionáveis e consumíveis, como quaisquer outros; por outro lado, a estratégia nacional para a educação e a ciência resume-se à produção e difusão de informação útil às empresas e a um projeto de Estado ao serviço dos grandes interesses capitalistas, no âmbito de um projeto mais vasto de transformação da sociedade portuguesa numa sociedade de mercado desregulado, tentanto aplicar uma visão distorcida das regras de funcionamento da economia de mercado à sociedade, beneficiando os beneficiados e prejudicando todos os outros.

Tal estratégia tem um significado e um efeito muito profundos na produção da sociedade de amanhã, sobretudo atendendo a que diversos autores recentes a têm designado como sociedade do conhecimento, embora esta atualização discursiva não possa ser aceite de modo acrítico. Frequentemente invocada de forma otimista para caracterizar uma época que tem que ver com o nascimento e expansão das novas tecnologias e de novos negócios no setor do conhecimento intensivo, com novas práticas de controlo e avaliação do saber, com a centralidade da racionalidade produzida pela ciência, a proposta de construção de uma sociedade de conhecimento tem-se tornado, também, numa construção de desinformação e de desconhecimento, nomeadamente quando envolta no véu da competitividade e crescimento e da preocupação política de pendor claramente economicista, em que a utilidade de cada um fica dependente da capacidade de se tornar mais ajustado, pela mudança na forma e conteúdo das qualificações, às novas exigências do mercado.

Em educação, vai-se afirmando um sistema baseado no autoritarismo, nos exames e nas hierarquias disfuncionais, que segmenta as crianças desde o início do percurso escolar, lançando-as numa longa e voraz competição, cujo resultado não será outro senão a exclusão e submissão de uma larga maioria, outrora excluida de facto e actualmente “excluida do interior” dado permanecer na escola sem ter sucesso nela. O contacto entre crianças de diferentes meios sociais é tornado dispensável ou mesmo indesejável, negligenciando a sua importância para o conhecimento das e o respeito pelas diferenças. O desenvolvimento de um conhecimento geral, de um pensamento crítico e humanista ou de práticas emancipatórias de cidadania, pilares fundamentais da sociedade democrática, ficam completamente submergidos neste novo “quase-mercado educativo”, que alimenta igualmente mercados paralelos, como os das explicações e dos fármacos. As crianças e jovens, com condições muito assimétricas e diferentes inteligências, gostos e interesses, passam a ser formados neste novo darwinismo social, em que cada um luta por si, todos contra todos e que ganhe o mais forte (que é, em regra, o mais privilegiado, quem pertence a uma classe dominante). Isto significa um violento ataque ao conceito de educação, pelo menos como este tem sido concebido e praticado desde o projeto de construção de uma escola de massas, universal, obrigatória e gratuita, multi-regulada, com igualdade de acesso e de sucesso.

Ao nível científico, procura-se impor a mesma lógica, lançando permanentemente os investigadores uns contra os outros, enriquecendo uns e excluindo outros, em nome de uma produtividade científica e de uma utilidade para a economia, nem sequer aferidas por critérios transparentes ou por instrumentos credíveis. Condenam-se à extinção, desta forma, linhas de investigação e áreas disciplinares inteiras, esquecendo-se que muitos dos avanços científicos são, na verdade, públicos, educativos, culturais e civilizacionais, não tendo uma aplicação direta e de curto prazo para o crescimento económico, mas constituindo a base indispensável para muitas dessas aplicações. As ciências sociais são particularmente afetadas, não sendo reconhecido o seu importante papel na consolidação da cidadania crítica, das políticas públicas e do desenvolvimento social e económico.

Nesta voragem da fragmentação e da competição, elimina-se igualmente a própria noção de “comunidade científica”, sem a qual a ciência não poderá desenvolver-se. Mais grave ainda, esfuma-se a ideia do conhecimento como “bem público”, sem o qual o projeto de sociedade democrática e moderna fica irremediavelmente truncado. Um discurso que tem como uma das suas pedras de toque a ideia de que a investigação deve ser realizada nas empresas tem como consequências deixar de lado toda a investigação fundamental nas ciências sociais e humanas (que não é passível de aí ser realizada) e, ao mesmo tempo, condena as empresas portuguesas a não beneficiarem da investigação científica, dado que a esmagadora maioria, pelas suas características, não tem qualquer capacidade de a desenvolver ou promover. Na prática, advoga-se o desinvestimento em ciência.

Nada disto, porém, é inevitável. O projeto de uma educação e de uma ciência que constituam bens públicos e pilares da democratização e do desenvolvimento ao serviço da humanização das sociedades, tem mobilizado muitos milhões de pessoas ao longo dos últimos séculos e, em Portugal, conheceu um enorme avanço nas últimas décadas, independentemente das flutuações dos ciclos económicos. Além disso, os próprios avanços culturais e tecnológicos têm produzido inúmeros novos meios através dos quais tal projeto pode ser atualizado e aprofundado. A Internet é possivelmente o melhor exemplo, mas não o único.

É tempo, pois, de nos unirmos e dizermos que esta não é a educação e a ciência que queremos deixar às novas gerações. Tal projeto implica, também, um exercício crítico e auto-crítico, de recusa de fechamento em modelos anacrónicos. É verdade que as nossas escolas e universidades foram assentes em pesadas hierarquias e numa tradição de fechamento elitista, herança das estruturas religiosas, reforçada pelo Estado Novo e não totalmente removida pela revolução democrática. É fundamental que as escolas, as universidades e os centros de investigação sejam espaços, eles próprios, democráticos, justos, rigorosos e humanistas, de forma a que possam ser alavancas da democracia, do bem-estar, da justiça social e do desenvolvimento humano sustentável.

Exorta-se, então, a um movimento coletivo, não apenas de repúdio consciente e fundamentado da nova ordem mercantilista, mas que contribua para afirmar estes sistemas como bens públicos e pilares da coesão crítica, democratização e desenvolvimento. Exorta-se, ainda, a que a promoção da cultura científica seja uma prioridade nacional, enquanto base de cidadania, de inclusão não subordinada, de conhecimento rigoroso de nós próprios, dos outros e do mundo, pilar-chave, enfim, de uma esfera pública alargada. Exorta-se, finalmente, à consideração das ciências sociais como possibilidade de entender os múltiplos tempos que fazem o presente; de combater o preconceito, a discriminação e as diversas formas de desigualdade, contribuindo para a compreensão e a superação da atual crise económica, financeira e social.

Carlos Estêvão (Universidade do Minho), Fernando Diogo (Universidade dos Açores), João Teixeira Lopes (Universidade do Porto), Maria José Casa-Nova (Universidade do Minho), Pedro Abrantes (Universidade Aberta), Sofia Marques da Silva (Universidade do Porto), membros do Manifesto para um Mundo Melhor (Manifesto Internacional de Cientistas Sociais)

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